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Matheus Pichonelli

Homem comum, atirador de Campinas está mais perto de nós do que gostaríamos

Matheus Pichonelli

12/12/2018 13h10

Euler Fernando Grandolpho, atirador que deixou quatro pessoas mortas e se matou durante um tiroteio em Campinas. Reprodução/Facebook

Na última terça-feira, dia 11, peguei em Valinhos um ônibus para Campinas, como faço duas vezes por semana há quatro anos desde que me mudei pra cá.

Chegando ao trabalho, comentei com um amigo, vizinho da Catedral Metropolitana de Campinas, que gostaria de engrossar a campanha "dê um livro de presente" neste Natal e o chamei para almoçar em algum lugar do centro, perto de alguma livraria.

Chegaria lá por volta das 12h e, como sempre costumo fazer quando vou ao centro, possivelmente entraria em alguma igreja para, se não rezar uma missa, olhar a arquitetura, a decoração, pedir um pouco mais de fôlego nesta reta final do ano e enviar bons pensamentos a alguém.

O plano se desmanchou porque a turma decidiu almoçar no shopping. Sem companhia, acabei comendo alguma coisa perto do trabalho – onde soube, pela TV, do atentado à Catedral, que deixou cinco pessoas mortas, inclusive o atirador (ou seria terrorista?), Euler Grandolpho.

Casos como este chocam em qualquer circunstância. Quando estouram nos lugares que costumamos frequentar, chegam a paralisar. Assim passei boa parte do dia, ciente de que poderia facilmente estar na linha de tiro, e tentando entender o que aconteceu.

Nos relatos ao longo do dia, não faltou gente para classificar o morticínio como um ato de loucura, o que, a meu ver, só ajuda a reforçar o estigma sobre quem sofre de transtorno psíquico.

Reforça também uma estratégia de defesa para quem se nega a ver o óbvio: a proximidade, em nosso convívio, com pessoas absolutamente "normais" até se tornarem uma ameaça de fato.

Como eu, o atirador também morava em um condomínio na cidadezinha próxima a Campinas. Pelos relatos, ele também trocara a vida na capital para ficar perto da família no interior. Os pais, como os meus, eram ligados à igreja. E, como tantos na nossa cidade tranquila do interior, ele também costumava andar com o cachorro pela vizinhança.

Sim, como milhares de brasileiros, ele estava deprimido. Estava desempregado –como milhões de brasileiros. Morava sozinho com o pai. E estava com raiva. Parece comum, não?

Seu perfil destoa da imagem que tendemos a associar com o "perigo". Não nascera em "uma fábrica de elementos desajustados", como poderia definir nosso vice-presidente.

Não tinha antecedentes criminais.

Estudou em bons colégios.

Foi aprovado em pelo menos um concurso.

Bonitão, era chamado de Cristopher Reever pelos amigos.

Vinha de uma família "estruturada", segundo os amigos, e possuía referenciais religiosos. O pai era colaborador frequente de uma paróquia em sua cidade.

Como descreveu um primo, Euler "não tinha nada de criminoso".

Pois esse sujeito comum, instruído e retraído foi capaz de entrar em uma igreja armado e disparar mais de 20 tiros contra os fieis.

Não sei quantas vezes nos esbarramos em nossa cidade. Possivelmente já trocamos cumprimentos andando com nossos bichos pela cidade ou dividimos a mesma fila de supermercado.

Recentemente, um texto do seu pai circulou em uma comunidade de moradores da região no Facebook que faço parte. Ele tentava encontrar um doador de medula óssea a outro filho, diagnosticado com leucemia.

No noticiário e, principalmente nos comentários das notícias, muita gente correu a associar o ato a uma possível depressão. Há alguns anos, segundo relatos, o atirador andava "esquisito".

Como se, fora daquele quarto, todos estivéssemos com a saúde mental em dia. Como se, naquele enclave arborizado entre duas das maiores cidades do país, os moradores estivessem imunes às neuroses alimentadas nas melhores famílias e ao estado irritadiço que parece ter se espalhado como vírus entre os habitantes do país.

Em dois boletins de ocorrência registrados como vítima, Euler Grandolpho se queixava do comportamento do filho de uma família vizinha. Vivia com mania de perseguição.

A implicância com adolescentes, aliás, era comum, assim como opiniões fortes sobre algumas questões –não tolerava usuários de drogas, por exemplo. Uma ex-namorada contou à Folha que ele já havia manifestado também opiniões racistas.

Enquanto o caso estiver no centro do noticiário, muitos lançarão lupas sobre a figura supostamente exótica do "maluco da catedral" para isolar as variáveis que levaram ao ato extremo.

O fato é que Euler Grandolpho era, até ontem, um sujeito absolutamente normal e que estava mais perto de nós do que suportamos saber. Reverberava ódio e ressentimento em uma época marcada justamente pelo ódio e pelo ressentimento.

Tudo isso poderia ser descarregado nos xingamentos a vizinhos ou nos grupos de WhatsApp, um depositário contemporâneo da nossa raiva e ressentimento alimentado por todos os lados.

Mas, com uma arma em mãos, o ódio foi descarregado no lugar de sempre: no peito de gente inocente, como se tornou comum no noticiário sobre atentados nos EUA, onde buscamos o exemplo para flexibilizar o acesso às armas e proteger nossas famílias.

Casos como o atentado à catedral de Campinas mostra que, enquanto seguirmos sentados num barril de ódio, a única diferença entre um assassino e um cidadão de bem nos momentos de raiva é um gatilho.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.