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Matheus Pichonelli

Fala de Alexandre Garcia sobre camisinha é a cara do recalque de carnaval

Matheus Pichonelli

05/03/2019 04h00

Foliões curtem bloco Corre Atrás nesta segunda-feira de Carnaval pelas ruas do Leblon, no Rio de Janeiro. Foto: Douglas Shineidr/UOL

"Fico pensando na perplexidade dos foliões, entre dois estímulos: primeiro, distribuem camisinhas; depois, alertam que assédio é crime".

A declaração, feita no Twitter por Alexandre Garcia, o ex-comentarista de TV que ainda pensa (e deseja) viver em 1968, não revela apenas uma confusão de dimensões carnavalescas entre prevenção e violência – como se o folião fosse um bicho destituído de qualquer raciocínio ou discernimento. Revela também um ranço entranhado em tempos de Carnaval.

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Com tanto tempo de profissão, o jornalista sabe bem a diferença entre conscientização e "estímulo", flerte e importunação sexual – entre uma coisa e outra não existe carta branca, mas vontade e o consentimento. Ele, no entanto, prefere fazer pouco caso de campanhas do tipo "Não é não".

Há muito de ignorância nesse tipo de discurso, mas também muito de ranço – um ranço que parece se multiplicar, durante a folia, na boca dos que juram amar o Brasil mas mal disfarçam o desprezo por tudo o que é produzido no país, inclusive nossas festas populares, associadas quase sempre a perversidades, sujeiras e desordens.

Nessa Alexandre Garcia não está só: o maior bloco do Carnaval é o bloco do recalque, a nossa mais primitiva capacidade de (não) dominar, concentrar ou reprimir aspirações, desejos e instintos.

É como aquele conhecido nosso que passa os cinco dias de Carnaval dizendo o quanto despreza o Carnaval sem conseguir se separar do controle remoto, ao qual se abraça assistindo a todos os desfiles e dizendo "que absurdo tudo isso", "mas que pouca vergonha", "por isso o Brasil não vai pra frente".

Para quem diz detestar o Carnaval, os cinco dias de festa são os responsáveis por todos os nossos males, da unha encravada ao crescimento pífio do PIB apurado pelo IBGE em 2018.

A precariedade do raciocínio é tanta que só nos resta imaginar que tal sentimento não brota da aversão, mas de uma vontade imensa, e inconfessável, de se jogar e de viver toda aquela alegria adiada, abafada ("quem dera gritar!") que só outras pessoas parecem experimentar. É nessas horas que se manifesta o ranço, como o que justifica o assédio e a violência nas festas que não ousamos participar.

Diferentemente do que muita gente supõe, não vivemos em um país alegre, ritmado e hospitaleiro, mas em um país fundado no genocídio, tarado por soluções autoritárias, e que naturaliza tragédias e extermínios nos espaços onde não cabem tantos clichês sobre nós mesmos.

O Carnaval, pelo contrário, é a interrupção das nossas jornadas alienantes, exaustivas e mal pagas; é a possibilidade do encontro nos espaços onde, no restante do ano, observamos apenas rotinas acizentadas entre a indiferença, o trânsito, a buzina e a solidão. Como lembra a psicanalista Regina Navarro Lins, é também uma trégua à censura que as pessoas se impõem o ano todo.

Nos desfiles, blocos e demais manifestações carnavalescas, podemos (re)ocupar esses espaços e dar a eles novos significados; podemos nos fantasiar e estimular encontros, dizer e demonstrar o quanto gostamos uns dos outros; podemos colocar para mexer e sambar nossos corpos que, para muitos, deveriam permanecer travados, entristecidos e incapazes de driblar e superar momentos de adversidades, como as tantas que parecem nortear nossas rotinas empobrecidas e permeadas de notícias que nos esmagam e despotencializam.

Para quem não precisa de cartilhas nem algemas para sobreviver em segurança contra a própria pulsão, é possível vivenciar um pouco disso tudo sem se tornar refém de nenhum papel, nem das horas de trabalho, nem dos momentos em família, nem dos momentos de folia.

O Carnaval é nossa concessão à intensidade e à imaginação; e alguém incapaz de lidar com a própria intensidade e imaginação sem apelar à agressão é alguém que já morreu.

Nosso problema, volto a dizer, não é o excesso de dias de alegrias permitidas; é a ausência de motivos para sorrir.

O Carnaval não deixa de ser um grito contra tudo isso. Deixem o Carnaval em paz.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.