Topo

Matheus Pichonelli

31 de março de 64 foi um golpe também contra mulheres. Todas elas

Matheus Pichonelli

28/03/2019 04h00

 

Manifestação na Cinelândia, no Rio, em 1º abril de 1964 (Foto: CPDoc JB)

Em seu primeiro 31 de março como presidente, Jair Bolsonaro determinou que as Forças Armadas celebrassem devidamente a data que instaurou 21 anos de ditadura no país. O argumento é que o movimento conseguiu "recuperar e recolocar o nosso país num rumo" e evitou "algum tipo de governo aqui que não seria bom para ninguém".

Os comandados receberam a ordem com constrangimento. Afinal, não se sabe como seria o Brasil se o perigo comunista tivesse triunfado por aqui, mas sabemos – ou deveríamos saber – dos estragos que a ditadura promoveu para supostamente "salvar a democracia".

Leia também

 

Se havia algo de democrático no regime era a capacidade de transformar opositores em inimigos, muitos deles perseguidos, torturados e mortos, fossem homens ou mulheres.

O regime representou também uma quebra na espinha dorsal de movimentos femininos que tomavam forma em um país que começava a se industrializar após a Segunda Guerra.

Pouco antes do golpe, por exemplo, o Brasil possuía diversas associações femininas que reivindicavam igualdade de direitos políticos e profissionais e se mobilizavam contra despejos em favelas, o alto custo de vida e até contra o envio de brasileiros à guerra da Coréia.

Mulheres como Bertha Lutz, líder na luta pelos direitos políticos, Romy Medeiros, autora intelectual da lei do divórcio, Nuta James, que presidiu a Assembleia Nacional de Mulheres em 1952, e Arcelina Mochel, fundadora do jornal "Momento Feminino" e uma das primeiras promotoras públicas do país, eram símbolos desse protagonismo feminino pré-ditadura.

No campo, nomes como Elizabeth Teixeira e Margarida Maria Alves lideraram a mobilização por reforma agrária e a ampliação de direitos civis no Nordeste com as Ligas Camponesas, que após o golpe foram destroçadas.

Elizabeth é viúva de João Pedro Teixeira, assassinado por ordem de latifundiários em 1962 e sobre quem é o documentário "Cabra Marcado para morrer", cujas filmagens o cineasta Eduardo Coutinho precisou interromper após o golpe. Nada mais simbólico.

Hoje com 94 anos, a ex-militante resumiu, em entrevista recente, sua missão: "A mulher tem que lutar, cobrar seus direitos, tem que ter coragem. Eu tive que ter coragem para continuar a luta e buscar uma vida melhor para os trabalhadores, para os camponeses. Tive também que ter força para aguentar as prisões e ameaças. Não podia ter medo".

História de lutas interrompida

Como lembra Maria Amélia de Almeida Teles no livro "Breve História do Feminismo no Brasil", as associações femininas praticamente desapareceram após 1964 – e só voltariam a tomar impulso em 1975, influenciado por movimentos globais que instituíram o Ano Internacional da Mulher.

No livro, Teles conta que as mulheres tiveram papel importante não só na luta por mais direitos, mas também na instauração do regime autoritário que os limitou, graças a movimentos como União Cívica Feminina, o Movimento de Arregimentação Feminina (MAF) e a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde) – todas mobilizadas contra as reformas de base de João Goulart, como a reforma agrária, e contra a "ameaça comunista".

Professora aposentada e fundadora do Camde, Amélia Molina Bastos se tornou um símbolo das marchas da família com Deus pela liberdade no período pré-1964 onde se via rosários nas mãos e cartazes com os dizeres do tipo "Vermelho bom, só do batom". Ela justificava as ações que levaram os militares ao poder dizendo que "a mulher deve ser obediente; ela é intuitiva, enquanto o homem é objetivo".

A repressão entre coturnos

Mas, segundo a outra Amélia, a autora do livro, no fim todo mundo se deu mal: uma vez consolidado o processo, os militares ascenderam ao poder e as "mulheres que se movimentaram euforicamente contra o comunismo e a subversão foram relegadas cada vez mais a um plano secundário".

Os generais, todos eles homens "objetivos" que se cercaram de outros homens "objetivos", ficaram 21 anos no poder. A imagem dos coturnos é um resumo daquele período.

Das mais de 7 mil pessoas denunciadas por crimes políticos na ditadura, 12% eram mulheres – a maior parte por participar de atividades clandestinas partidárias. Muitas tiveram de sair do país. Parte delas formou grupos de resistência no exílio, como o Circulo de Mulheres Brasileiras em Paris.

Outras foram mortas, presas ou torturadas. Segundo Amélia Teles, em muitos casos, foram colocados fios elétricos na vagina e no ânus. Houve mulheres estupradas. Outras sofreram abortamento forçado devido a chutes na barriga ou foram se despir frente aos torturadores.

Memória, bandeira feminina

Com os anos, a luta pela memória e justiça dos crimes da ditadura se tornou uma luta essencialmente feminina. "São as mulheres, mães, filhas e companheiras sobreviventes que levantaram esta bandeira, inclusive para saber onde estão os corpos", lembra a historiadora Paula Franco.

Uma das presas políticas do regime foi Dilma Rousseff. Jair Bolsonaro fez elogios ao seu torturador, Brilhante Ustra, durante o processo de impeachment.

E aqui chegamos a 2019, ano em que a determinação para celebrar os 55 anos de um golpe parte de um presidente eleito prometendo varrer dissidentes do país, que expõe uma jornalista a milícias virtuais e que, uma vez empossado, escolheu apenas duas mulheres entre 22 ministros – uma delas, segundo ele, "sem muita importância".

Os tempos são tão estranhos que a celebração da data é comemorada até pela líder do governo na Câmara, deputada Joice Hasselmann (PSL-SP), para quem é preciso "desinstalar o comunismo no Brasil". (Aqui reiteramos o direito dela de, em tempos democráticos, falar o que quiser, e mudar de ideia como convir ).

Os tempos são outros, mas nem tanto. No Brasil, a história se repete. Primeiro como tragédia. Depois, também.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.