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Matheus Pichonelli

A obsessão do brasileiro em parecer normal precisa ser estudada

Matheus Pichonelli

05/05/2019 04h00

Fernanda Torres e Luiz Fernando Guimarães na série "Os Normais", da TV Globo

O que é ser normal no Brasil hoje?

Há uma semana tenho feito essa pergunta. Mais precisamente, desde que o presidente do Banco do Brasil, Rubem Novaes, fez a seguinte análise sociológica do país pré-revolução de 2018: "O 'empoderamento' de minorias era o instrumento acionado em diversas manifestações culturais: novelas, filmes, exposições de arte etc., onde se procurava caracterizar o cidadão 'normal' como a exceção e a exceção como regra".

Parece (e é) estranho, mas reparem numa coisa: constatações como essa, agora com porta-voz oficial, só começaram a aparecer depois que novelas, filmes e exposição de artes passaram a repensar a própria (falta de) representatividade.

Para responder a pergunta do início do texto, pensei em aplicar um questionário aos amigos que juram ter sofrido durante anos o peso da discriminação por serem… "normais".

Um deles é conhecido por bater no peito para descrever as raquetadas aplicadas pelo pai toda vez que ameaçava se desviar de um certo padrão gestual e normativo.

"Eu apanhei e não fiquei traumatizado, não fico de mimimi, e agora sou o tipo cidadão respeitável que ganho meus cruzeiros por mês", costuma dizer ele, espumando, como se quisesse disfarçar alguma coisa – as olheiras profundas, as compulsões, a dificuldade em se relacionar, a insegurança, os acessos de raiva, as horas gastas na internet xingando todo mundo, os tiques nervosos e a preocupação excessiva com os modos de vida de tudo o que não é ele me deixam desconfiados de que talvez, de repente, quem sabe, ele não esteja tão pleno assim com as próprias convicções.

Resolvi, no fim, pesquisar para saber o que diziam os leitores sobre a fala do presidente do BB. Soube, então, que:

"O sujeito normal é aquele que levanta cedo e vai trabalhar, produzir, contribuir com a sociedade, estudar para evoluir sempre e não aquele que pinta o cabelo de cor de rosa demonstrando desequilíbrio";

"Cidadão normal, tipo aquele que o banco nunca deu atenção";

"Que vive conforme a norma ou regra; que serve de modelo; exemplar; regular; habitual; ordinário";

"Não ser financiado pela Nova Ordem Mundial: ser ma.conheiro, feminista aborteira tatuada, f.unkeiro, VlAD0, ne.gro agitador de nádegas etc etc;"

"Ser normal é rejeitar a 'sociedade alternativa' que os meios de comunicação procuravam impor";

Não sei vocês, mas quanto mais ouço falar em normalidade, mais lembro do casal neurótico, e muito louco, interpretado por Fernanda Torres e Luiz Fernando Guimarães na série "Os Normais", da TV Globo. Ali, de fato, ser anormal era hilariamente normal.

Não é disso, porém, que falam os comentaristas de portal, o presidente do BB entre eles.

Na cabeça dos supostos cidadãos "comuns", existe uma confusão enorme entre "normalidade" e heteronormatividade*, como se qualquer "desvio" a essa padrão fosse também um desvio de conduta. Essa confusão não se dá à toa.

Lendo suas manifestações, fico em dúvida se o problema dessa galera é a incapacidade de ver o mundo fora do umbigo ou se o Brasil vive uma epidemia de normalopatia, a doença de quem quer ou tenta ser "normal" o tempo todo.

Sobre esse fenômeno, o psicanalista Christian Dunker resumiu certa vez, em uma palestra: o "normalopata" é o sujeito que não sofre, que está sempre bem, e para quem é sempre o mundo é que está caindo.

Se não for isso, é possível que estejamos apenas comprando muito facilmente respostas-prontas sobre um mundo imaginário – e basta sair um pouco do celular e andar cinco minutos pelo centro de qualquer cidade para ver que os personagens da propaganda, apontados pelos PhDs em normalidade como 'aberração", são, na verdade, um país inteiro – um país, inclusive, com inúmeros arranjos familiares, todos eles legítimos.

Nessas horas lembro do documentário "Waiting for B.", que acompanhou durante meses a rotina de jovens periféricos, a maioria negros e gays, que acampavam na frente do Morumbi para conseguir ingressos para o show da Beyoncé – e que ouviam todo tipo de recriminação, como se fossem "um bando de desajustados e desocupados"; na vida privada, o documentário mostrava o oposto de qualquer estereótipo: todos ali trabalhavam, cumpriam horários rigorosos, eram bons filhos, bons amigos, bons vizinhos, tinham suas crenças, etc.

Personagem "normal" de Francisco Milani em "Viva o Gordo"

Só quem passou os últimos 500 anos dormindo pode imaginar que os grupos sociais perfilados em uma propaganda de banco sejam grupos privilegiados na fila de qualquer banco – ou mesmo de emprego. Uma análise simples sobre as estatísticas de quem morre e de quem ocupa os postos de comando no Brasil ajudaria a desconfiar das origens das nossas misérias para além da paranoia normalopata.

Parafraseando (e desvirtuando) um velho refrão, a vida é o que nos acontece enquanto estamos ocupados tentando ser normal.

O risco é chegar ao fim da vida e perceber que nos tornamos aquele personagem do Francisco Milani no programa "Viva o Gordo", que pedia ou dizia alguma coisa absurda e, diante do assombro dos ouvintes, perguntava, sempre alterado: "Tá me olhando por quê? Eu sou normal!". Ô se é.

*Em tempo: o pior é saber que a maior esperança desses caras para derrotar o mimimi e reconstituir a normalidade planetária é Donald Trump, o presidente dos EUA que precisou mover dinheiro e advogados por um acordo de confidencialidade com uma atriz pornô. A família tradicional agradece.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.