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Matheus Pichonelli

Homofobia de governantes é um desserviço em tempos de prevenção ao suicídio

Matheus Pichonelli

12/09/2019 04h00

(iStock)O professor Fernando Silva Teixeira Filho, do Departamento de Psicologia Clínica da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp em Assis, no interior de São Paulo, tem 52 anos e milita na causa LGBT desde os 20.

Na última semana, ele acompanhou com preocupação os desdobramentos de episódios de homofobia como o protagonizado pelo prefeito do Rio de Janeiro e pastor da Igreja Universal do Reino de Deus, Marcelo Crivella, que mandou recolher uma HQ da Bienal do Livro que mostrava um beijo entre dois rapazes. O objetivo, disse o prefeito, era "cumprir a lei e defender a família".

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Mas terá sido mesmo este o objetivo que levou o prefeito a tomar a decisão que tomou? Se essa fosse mesmo a preocupação de Crivella e de outros governantes que embarcaram na "guerra cultural" contra pautas LGBT, eles olhariam com mais atenção para os efeitos devastadores desse tipo de julgamento, que alimenta ansiedades e pode levar à depressão e ao suicídio de jovens dissidentes dos padrões de sexualidade.

Na última terça-feira (10), quando o assunto ainda estava em pauta, Fernando Teixeira participou, como orientador, da comissão examinadora de uma dissertação de mestrado em psicologia com o tema "Vozes do Silêncio: lesbofobias e processualidade suicida", da mestranda Yasmin Aparecida Cassetari da Silva.

O tema é caro para o professor. Em 2009, juntamente com a professora do Departamento de Psicologia Experimental e do Trabalho Carina Alexandra Rondini, atualmente na Unesp de São José do Rio Preto, ele realizou um estudo com 2.256 estudantes do ensino médio em três cidades do interior paulista (Presidente Prudente, Assis e Ourinhos).

A pesquisa constatou que 484 entrevistados (21,5%) já pensaram em se suicidar. Do total, 7,4% já haviam tentado se matar.

A prevalência de pensamentos suicidas entre os heterossexuais era de 20,7% ao passo que, entre os "não heterossexuais", o índice chegava a 38,6% -quase o dobro.

E mais: quase metade dos alunos gays que assumiam pensar em suicídio já havia tentado se matar, e a maioria dizia que o pensamento ainda era recorrente na época da pesquisa.

Para o pesquisador, a tentativa de censura promovida por Crivella é um claro exemplo de homofobia social, institucional e estruturada -e projeta sobre um simples beijo entre dois homens um "juízo de valor imenso".

'Estão tentando nos enfiar no armário novamente'

Isso, no auge da campanha do Setembro Amarelo, de prevenção ao suicídio, é grave não apenas porque se trata de uma figura pública dizendo às pessoas o que é ou não obscenidade bem como o que os pais podem ou não mostrar aos filhos.

Para a população LGBT, o efeito é devastador, já que as expressões e desejos da sexualidade são tratados como desvios a serem contidos ou doença a ser tratada. "Estão tentando nos enfiar no armário novamente. No armário se produz a ilusão de que vivemos em uma sociedade monossexual quando, na verdade, ela é diversa. Imagina o quão problemático é para um ou uma jovem ter medo de contar aos pais sobre quem ama ou com quem teve a melhor noite de intimidade, se seus pais não aceitam a sua diferença?"

Teixeira Filho alerta que o processo de suicídio não acontece de um dia para outro. É, sim, resultado de uma elaboração, na qual a LGBTfobia produz a chamada estranheza de si. "O jovem já é inseguro. A pessoa que não se identifica nessa sociedade e não se vê representada nem na HQ acha que ninguém sente como ela. E, quando sente, precisa estar em um saco preto, que é onde se coloca um cadáver."

(Em tempo: em São Paulo, quando João Doria determinou a retirada de apostila com suposto conteúdo "inadequado" sobre identidade de gênero, professoras relataram que os materiais foram guardados em um saco preto.)

O professor explica que, quando pensamos na morte, pensamos em luto. E luto, para um jovem LGBT, é um processo duplamente doloroso. Primeiro, quando se perdem os laços familiares ou sociais que não reconhecem sua orientação (um exemplo é quando o filho precisa dizer aos pais que não se reconhece na vida imaginada para ele, com filhos biológicos e outros padrões normativos. A frustração, define o professor, é enorme). Segundo, quando diante das fobias (sempre no plural) e das ridicularizações, é preciso se esconder e "matar" um desejo que não é socialmente aceito. "A sociedade te força a fazer o luto da sua homossexualidade, da qual você não é estimulado a  orgulhar-se nem reconhecê-la como sua."

Para o especialista, se o poder público estivesse de fato preocupado com as famílias, deveria investir em programas de prevenção ao suicídio, entendendo e eliminando a LGBTfobia através da educação. Os sinais emitidos até aqui, porém, vão no sentido contrário.

"O que está acontecendo é gravíssimo. Em uma democracia, os jovens LGBT deveriam importar tanto qualquer outro cidadão e cidadã. Mas não importam. Os únicos corpos que importam são os heterossexuais, preferencialmente brancos, jovens e com dinheiro. Os demais são entendidos como doentes e empurrados para o suicídio."

Por telefone, Teixeira Filho termina a entrevista com uma pergunta: "Como é possível pregar o amor incentivando a morte?"

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.