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Matheus Pichonelli

Prepare o modelito: a baixaria seguirá na moda em 2020

Matheus Pichonelli

02/01/2020 04h00

iStock

Uma das missões mais ingratas de 2019 foi a de quem conseguiu montar uma retrospectiva minimamente decente sobre os eventos que marcaram o ano na seara política. Em 2019, essa seara borrou de vez as fronteiras com o noticiário policial e atravessou o rubicão dos programas de fofocas –aqueles que alimentam a audiência com golpes baixos de todo tipo. 

Para quem perdeu as contas, o jornal O Globo publicou, no penúltimo dia do ano, uma seleção com as principais tretas da estreia de Jair Bolsonaro como presidente. Nem todas foram protagonizadas por ele, mas, como não se cansam de avisar nossos avós, o exemplo quase sempre veio de cima.

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Teve tuitaço sobre golden shower no Carnaval. Teve dicas para os brasileiros colaborarem com a preservação ambiental fazendo cocô dia sim, dia não. Teve lembranças à mãe do eleitor que perguntou ao presidente onde estava Fabrício Queiroz, o encrencado ex-assessor parlamentar suspeito de liderar um esquema de rachadinha no gabinete do então deputado Flávio Bolsonaro, no Rio. 

Teve ministro chamando a mãe de uma eleitora de "égua sarnenta e desdentada" e outro trazendo a mãe e a avó de um deputado para a conversa após ser chamado de "tchutchuca". (Reparem que nesses momentos de maturidade aflorada, sempre sobra para a mãe ou para a vó de alguém).

Teve áudio de deputado chamando o presidente de vagabundo e ameaçando implodir o ex-aliado

Teve troca de emojis entre Joice Hasselmann e os filhos do presidente, que revidaram chamando a deputada de Peppa Pig. Teve a mesma deputada chamando uma colega de "burra" e levantando suspeitas sobre seu passado.

Teve "denúncia" sobre uma suposta suruba gay que impediu que um herdeiro da coroa fosse hoje vice-presidente. 

E teve Alexandre Frota mandando colega sentar no seu colo ou perguntando a um dos filhos do presidente se ele gostava de ver seus filmes pornô. 

Não faltou trabalho para a Comissão de Ética da Câmara, que, segundo o levantamento de O Globo, instaurou 20 processos ao longo do ano, o maior número de ocorrências em toda a década. 

Meu espaço para este texto já está acabando e mal deu tempo de falar ainda das tretas que se espalharam como praga pelos estados. Na Assembleia Legislativa de São Paulo, por exemplo, um deputado chamou os colegas de vagabundos e por pouco não apanhou de um deles após perguntar se ele estava "ofendidinho".

Na versão 20.20 da era Bolsonaro, a tendência é de mais tiros, porrada e bomba com os fios desencapados das indefinições sobre o espólio do PSL (bolsonaristas x bivaristas), o avanço das investigações sobre laranjas e chocolates, as eleições municipais, a contaminação de humores com uma disputa presidencial acirrada nos EUA, as muito prováveis novas defecções de ex-aliados não totalmente fiéis ao capitão, o avanço das discussões sobre prisão em segunda instância no Congresso e os ataques, físicos e simbólicos, a militantes e ambientalistas. 

Esse clima de hostilidade tem sido a marca de uma geração que aprendeu a se comunicar aos berros e que só ganha claque quando identifica um inimigo e o joga para os leões em estratégias de escracho, humilhação e exposição indevida. Quem mantiver a compostura, refutando maniqueísmos e observando profundidade em uma realidade um pouco mais cinza, será cuspido, como previa o Apocalipse: "porque és morno, e nem és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca".

Como mostrou a antropóloga Isabel Kalil na mesma reportagem, o comportamento formal de quem se apega à liturgia do cargo tende a ser devorado por grupos cada vez mais agressivos que têm como objetivo ganhar a disputa viralizando nas redes sociais (um terreno, vale lembrar, em que ninguém vence pedindo licença ou por favor). É a chamada "política emocionada" que se guia por trending topics.

"Se um político não segue essa cartilha hoje em dia, ele acaba sendo considerado chato, não ganha atenção", diz.

Não há o que fazer se não preparar o modelito: em ano eleitoral, a baixaria seguirá em alta ao longo da temporada. A mediocridade também.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.