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Matheus Pichonelli

Na mitologia bolsonarista, quem mente em CPI agora vira “mito”

Matheus Pichonelli

12/02/2020 14h05

Hans River do Rio Nascimento presta depoimento à CPMI das Fake News. Foto: Jane de Araújo/Agência Senado

Ex-funcionário de uma empresa suspeita de promover disparos de mensagens ilegais no WhatsApp durante a campanha de 2018, Hans River do Rio Nascimento decidiu usar seu depoimento à CPMI das Fake News, no Senado, para atacar uma das repórteres mais premiadas do país dizendo que ela queria uma matéria em troca de sexo.

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O ataque sexista a Patrícia Campos Mello, vencedora do Prêmio Internacional de Liberdade de Imprensa do Comitê para Proteção de Jornalistas em 2019, foi sucedido por uma coletânea de mentiras espalhadas ao longo do depoimento, entre elas a de que não havia municiado a jornalista com documentos e informações que serviram de base para a reportagem.

Foi solenemente desmentido pela divulgação da troca de mensagens ao longo da apuração.

Ainda assim, recebeu como homenagem, no Twitter, a hashtag #HansOMITO.

A fama após mentir em uma sessão de CPMI faz muito sentido em um país que transformou as farsas mais fajutas em engrenagens centrais dos seus afetos políticos.

A mitologia, segundo o dicionário Michaelis, é uma "interpretação ingênua e simplificada do mundo e de sua origem". O mito, assim, é uma "pessoa ou um fato cuja existência, presente na imaginação das pessoas, não pode ser comprovada" ou mesmo uma "crença, geralmente desprovida de valor moral ou social, desenvolvida por membros de um grupo, que funciona como suporte para suas ideias ou posições". 

É, por fim, "a representação de fatos ou de personagens distanciados dos originais pelo imaginário coletivo ou pela tradição que acabam por aumentá-los ou modificá-los".

Não à toa é chamado de mitomaníaco quem sofre com o hábito patológico de mentir.

Na mitologia bolsonarista, Hans, o "mito", calou a boca de muita gente ao supostamente desmascarar uma jornalista e as intenções diabólicas de seu jornal, que serviria apenas a um projeto de um partido político, o PT.

Esse lenda ganhou tração em um país que colocou a faixa presidencial em outro mito que, em sua fábula particular, prometia livrar o Brasil do comunismo, da corrupção, da má gestão, das ideologias e nos conduziria ao paraíso de águas límpidas e sem inundações onde seus eleitores viveriam harmoniosamente no estado de natureza (a que restou) defendendo a integridade de suas famílias fazendo arminha com a mão.

Esse mito, para ficar de pé, não pode concorrer com o jornalismo profissional, desses que questionam medidas e desconstroem as interpretações ingênuas e simplificadas de mundo das versões oficiais.

Nessas versões de sonho e fantasia, nenhum aliado acusado de recolher salários de funcionários fantasmas precisa submergir enquanto espera uma pica do tamanho de um cometa explodir.

Nenhum miliciano que emprega a mãe e a mulher em gabinetes de aliados precisa morrer em troca de tiros com a polícia com medo de ser apagado como queima de arquivo.

Ninguém jamais vai contestar a competência dos membros da família para assumir cargos acima de sua capacidade diplomática e intelectual em embaixadas de prestígio.

Nem a capacidade técnica de ministros e aliados que só chegaram onde chegaram por puro alinhamento ideológico.

Ninguém precisaria mostrar quem, quando, onde e por que alguém promoveria a perversão em livros didáticos, escolas e programas de educação sexual que se tornaram campos de disputa ideológica.

O bolsonarismo não gosta do jornalismo profissional porque não gosta de ver sua mitologia contestada.

Não gosta porque em 400 dias como presidente seu mito maior deu 671 declarações falsas ou distorcidas, como mostra o trabalho jornalístico do coletivo Aos Fatos.

Não gosta porque sabe que o trabalho jornalístico bem feito e bem apurado é capaz de estourar os balões inflados que o fizeram chegar onde chegou.

Essa mitologia acaba de ganhar um novo "mito". E ele é tão real quanto uma nota de três.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.