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Matheus Pichonelli

“Sou autora há 70 anos e até hoje me chamam de ex-mulher de embaixador”

Matheus Pichonelli

09/03/2020 04h00

A jornalista e escritora Cecília Prada

Na mesinha de madeira do hall de um edifício perto do bosque dos Jequitibás, em Campinas, o livro comemorativo dos 50 anos do Prêmio Esso, o mais importante do jornalismo brasileiro, me aguardava ao lado de uma jarra de água gelada.

Com o livro nas mãos, a vencedora da edição de 1980 do prêmio me recebeu no horário marcado com um pedido de desculpas: ela não tinha como me atender no apartamento porque a entrevista poderia atrapalhar a nora, que trabalha no esquema home office. É com ela e o filho que Cecília Prada vive desde 2016.

Fazia exatos 40 anos que ela se tornara a primeira mulher a receber o prêmio individual de melhor reportagem nacional de 1980 por um conjunto de matérias, publicadas na "Folha de S.Paulo", sobre os maus-tratos sofridos por crianças e adolescentes internados em uma espécie de manicômio para "jovens com problemas mentais e desvio de condutas", a famosa Clínica de Repouso Congonhas, em São Paulo.

Nosso encontro acontecia dois anos após um amigo em comum entrar em contato para perguntar como ela poderia obter uma credencial para assistir a um evento promovido por uma revista feminina em São Paulo. Tentei a intermediação por e-mail. A resposta dos organizadores não foi só uma negativa; foi um desaforo com uma autora premiada.

Veio dali, acho, o desejo de escrever sobre a jornalista e escritora de 90 anos que até hoje se irrita ao ser apresentada em uma roda de conversa como a "ex-mulher do Sérgio Paulo Rouanet" – o famoso diplomata, filósofo, ensaísta, ex-secretário e criador da lei de incentivo à cultura que ficou conhecida pelo seu sobrenome.

A loucura nua

No livro comemorativo era possível visualizar as imagens da reportagem que renderam o Esso de fotografia também para o repórter fotográfico Juca Martins, parceiro na pauta que precisou subir nos postes vizinhos da instituição para flagrar crianças com transtornos mentais em condições precárias, nuas, sujas e abandonadas no pátio.

"A reportagem contribuiu para lançar luz sobre uma parte da população que a sociedade normalmente mantém escondida e esquecida e também para colocar em discussão os problemas relacionados ao atendimento psiquiátrico no Brasil", diz o texto de apoio do livro sobre os premiados.

Os detalhes da reportagem são narrados em "Menores no Brasil: a Loucura Nua", um dos nove livros de ensaios e jornalismo publicados por Cecília Prada em mais de 70 anos de profissão. Ela é autora também de oito obras de ficção, entre elas o livro de contos "Ponto Morto", de 1955, que tem prefácio de Lygia Fagundes Telles, e "O Caos na Sala de Jantar", uma novela acompanhada de um conjunto de contos que rendeu a ela o Prêmio Revelação de Autor da APCA (Associação Paulista dos Críticos de Artes) e menções honrosas dos prêmios José Lins do Rego e Governador do Estado de São Paulo.

No currículo tem ainda seu trabalho como dramaturga, publicações em diversas antologias nacionais e estrangeiras e tradução de 39 livros do inglês, francês, italiano e espanhol – um deles é "Olive Kitteridge", da vencedora do Prêmio Pullitzer de 2009, Elizabeth Strout.

Desenho da autora

Os prêmios e publicações ajudam a entender por que a jornalista e escritora – que em 1994 teve um conto seu, "La Pietá", lido e transmitido na abertura da Feira Internacional do Livro de Frankfurt, quando o Brasil foi o país-tema – se incomoda em ser apresentada como a "ex-mulher do embaixador" – ela própria só não é diplomata hoje porque, em novembro de 1958, ao se casar com o colega que conheceu em uma aula no Instituto Rio Branco, foi obrigada pelo Itamaraty a se demitir.  Até então ela era apenas a sétima mulher aprovada no concorrido concurso. Os detalhes do imbróglio são descritos em uma reportagem recente da BBC Brasil.

Cecília conta que, na época, pensou em pedir um mandado de segurança para obter o direito de seguir na carreira mesmo casada com um diplomata, mas o marido temia represálias – o que, segundo ela, poderia impedir o casal de viver nas embaixadas de Washington, Nova York e Genebra (na ONU). "Ele me pediu para não estragar a carreira dele. E eu, como se vê, não estraguei", diz, irônica.

Muitos anos depois, em 2014, ela recebeu uma comunicação da Comissão Nacional da Verdade alertando que seu processo no Itamaraty era um "caso emblemático nacional de discriminação contra a mulher". Cecília, que já escreveu um apelo para a então presidenta Dilma Rousseff e à ONU Mulheres, luta ainda para que a Comissão de Anistia do governo federal, hoje sob a aba de Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos), reconheça a sua reintegração na carreira diplomática, com pedido de indenização. Um primeiro pedido já foi indeferido pela ministra, mas Cecília recorreu. Segundo a autora, Damares passou por cima do Ministério Público da União, que deveria emitir um parecer antes da canetada da ministra. "Tudo voltou à estaca zero", diz, revelando cansaço.

(Detalhe: se não tivesse encerrado a carreira de diplomata, ela receberia hoje um salário de R$ 20 mil, mesmo se jamais tivesse sido promovida. Atualmente, ela diz sobreviver com um salário mínimo.)

"Sou mulher, logo, não existo"

Após o divórcio, em 1973, Cecília retomou a carreira jornalística, iniciada aos 19 anos, quando ainda era estudante da faculdade Cásper Líbero (ela também é formada em letras). Desde então, foi morar com os dois filhos e se bancou com contribuições para diversos veículos da grande imprensa. Sete anos depois, já tinha um Prêmio Esso na estante. 

Na maior parte da conversa, de cerca de duas horas, Cecília conta o quanto demorou para publicar a reportagem premiada, alvo de todo tipo de questionamentos, a começar pelos colegas (homens) de redação. "Duvidavam que eu tinha escrito."

Ela relata também que a publicação mexeu com interesses de pessoas influentes, o que foi determinante, afirma, para seu ostracismo na grande imprensa desde então. "Na semana seguinte ao prêmio, era como se ninguém mais lembrasse quem eu era. Virei a jornalista mais maldita do país."

Capa do livro "O Caos na Sala de Jantar"

A explicação renderia um livro. Renderia, não: rendeu. Em uma autobiografia que conseguiu publicar em 2016 apenas em versão online no site da Amazon, ela narra, já na introdução, o dia em que um importante editor perguntou por que ela se dedicava a escrever a história de sua vida. Seria aquela história tão interessante assim?, quis saber.

Ao explicar que, não fossem as circunstâncias daquele episódio, ele estaria naquele momento diante de uma embaixadora, e não de "uma jornalista pobre e idosa que não tem bem como viver", ouviu de volta um tipo de consentimento: sim, ela tinha uma grande história a contar. "Não agradeci a autorização. Que não solicitei. Mas assim são os homens, que já nascem donos de uma autobiografia autorizada e solicitada, prontos, encadernados e em fino couro dourado", escreveu.

O nome do livro é "Sou mulher, logo, não existo".

Quarenta anos após o auge da carreira jornalística, Cecília diz que hoje depende do filho e da nora até para pedir táxi. "Eles são ótimos, mas não é uma situação fácil."

No apartamento, em uma rotina reclusa, ela diz que escreve "desesperadamente" ("tenho coisa da semana passada para contar"), apesar da vista prejudicada e da ausência de alguém que a ajude no trabalho de digitação.

Ainda assim, escreve. É como se, aos 90 anos, ainda precise desobedecer a mãe, para quem o papel da mulher era ficar em casa e cuidar dos filhos e do marido – um papel que ela se negou a aceitar até mesmo quando morou com a família nos EUA. Em nova York, ela participou do movimento teatral de vanguarda e escreveu a peça "Central Park Bench Number 33, Flight 207", encenada no Judson Poets Theater. Foi uma das sete peças que ela escreveu em português e em inglês.

Sua relação com os livros, conta, veio literalmente do berço. Seu pai, o educador Luiz Prada, criou um método de alfabetização em que narrava (e ensinava a narrar) situações cotidianas vividas por uma garotinha. Chamava "Cartilha da Cecília". "Eu nasci dentro do livro. Eu me vi como personagem."

Luta contra a depressão

Sua última colaboração regular na imprensa foi entre 1995 e 2016, para a revista "Problemas Brasileiros", do Sesc-Senac, na qual publicou artigos sobre literatura, artes e história. Desde então, Cecília diz viver os piores anos de sua vida. "Não tenho dinheiro e luto contra a depressão. É uma carga que tenho aguentado a vida inteira", diz.

Conforme a conversa avança, numa tentativa de entrevistada e entrevistador entenderem uma vida de tantas reviravoltas, fica evidente a mágoa com o país onde uma autora premiada precisa provar, desde os 19 anos, que pode trabalhar e merece ser publicada.

"Não precisa anotar isso", diz ela, mais de uma vez, vendo o meu esforço quase em vão de registrar as histórias no papel. "Está tudo nos meus livros."

Em tempo. Em respeito à autora, reforço aqui seu pedido enviado por e-mail no dia seguinte da nossa conversa: "É preciso salientar que não sou uma desconhecida, estou há 70 anos no cenário literário. Já figurei em uma antologia sueca que reuniu 35 autores brasileiros, e para a qual fui indicada por Lygia Fagundes Telles. Gostaria que você acentuasse a linha literária, mas sem conhecê-la, impossível". Fica o convite para os leitores.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.