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Matheus Pichonelli

Com estreias suspensas, passado ganha novos sentidos em onda retrô

Matheus Pichonelli

16/04/2020 04h00

Pelé na Copa de 70: distrações de uma quarentena sem cinema Foto: Zumapress

Saiu o resultado do Grande Concurso Boas Festas da Mesbla. Quem tirou o cupom de número 779.080 levou um conjunto estéreo GE. O 576.942 tem direito a um acordeon Veronese. O 588.942, a uma bicicleta Monark. E o 788.080, a um revolver Rossi.

Ao lado do anúncio em preto e branco, o repórter Leroy Hansen escreve, de Tóquio, que "a Ásia encontrou, enfim, o caminho de sua grandeza – e poderá agora transformar-se na figura dominante do tablado universal".

As notícias do caderno Ilustrada de 1º de janeiro de 1960 são abertas em tamanho real no livro que ganhei do meu amigo Marcos Araújo. No último domingo, ele passou em casa para deixar alguns livros e CDs que já não lia nem ouvia. Nosso cumprimento, um toque de cotovelo e poucas palavras à distância, foi mínimo; a sacola era gigante. 

Entre edições antigas de livros como "Cem Anos de Solidão", a coleção de capas do caderno de cultura da "Folha de S.Paulo" entre 1960 e 1990 parece preencher os espaços vazios de tempo num domingo de quarentena.

Com uma folheada, vou para maio daquele ano e descubro que o Festival de Cannes terminou com vitória de Federico Fellini e derrota do público, que aparentemente detestou "A Doce Vida" – "nada mais que uma reportagem subjetiva" e um "falso retrato da sociedade italiana", diziam os entendidos.

Olho para a estante empoeirada e vejo meu exemplar em DVD do filme sexagenário que o diretor italiano definiu como uma descrição intencional de uma sociedade que não tem mais paixões e se resumia então a belos vestidos, sorrisos, óculos tartaruga, pernas e tapetes. A mídia física, resistente, parecia a consagração irônica sobre as letras apagadas do papel.

Chego a novembro de 1969. "Guimarães Rosa previu a própria morte." Ao fim do obituário, me pergunto há quanto tempo não abro "Primeiras Estórias". A resposta vem em forma de um papel amarelado, com rabiscos de possíveis nomes para o meu TCC, que estava em gestação em 2005.

Chego à última página. Em 1990, Carlos Calado apostava que a "dance music" e a MPB iriam dominar o mercado de discos do país na década. "Músicos como os do Paralamas, Legião Urbana, Djavan e Marisa Monte estão se aproximando de uma nova linguagem", previa Aires Catarino, então diretor de marketing da EMI-Odeon, em 1º de janeiro daquele ano. Já a lambada, dizia o executivo, seria apenas "uma coisa de verão". Pois é, não dá para acertar todas.

As notícias antigas, com previsões furadas ou certeiras do futuro que já conheço, me faz pensar que a quarentena achatou minha noção de tempo. Com futuro incerto, o presente se resume a notícias da pandemia e um passado a ser revisitado. Tudo segue assustador, mas nos intervalos de descanso para a saúde mental (sim, eles existem, mesmo trabalhando e vigiando quase 24h por dia uma criança de 6 anos que quer botar fogo na casa), tenho agora a possibilidade de parar no tempo e conferir as histórias, sons e imagens de 30, 40, 60 anos atrás como se fossem novidades. Quando isso seria possível?

No pacote de CDs doados pelo meu amigo, abro um encarte pela primeira vez depois de anos. Boto no aparelho, que ainda resiste, e percebo que me acostumei mal ao som limitado e sempre interrompido pelas notificações do celular. Ao percorrer os desenhos da contracapa, sinto os tacos sintéticos da sala estourarem um a um e se transformarem numa gangorra que me arremessa até o verão de 1996, quando ouvi "Músicas para Acampamentos" pela primeira vez em uma "brinca" (era assim que chamávamos as festas de quintal no interior) na casa de uma amiga que passou anos sem visitar minhas lembranças. 

Passei, assim, o resto da tarde ouvindo as músicas que já não sabia se me tocavam pela qualidade artística, pelo excesso de sensibilidade da quarentena ou por arranharem sem piedade as pratarias da memória afetiva. 

Num domingo qualquer, pré-quarentena, quem tinha um acesso mínimo e privilegiado a algum equipamento cultural como cinema, teatro e livraria estaria àquela hora abarrotado de novidades que jamais seriam conferidas a tempo, o que explica a ansiedade (também privilegiada) do amigo millennial por não dar conta de tudo o que sai do forno da indústria cultural em um único fim de semana. Sem as novidades e estreias, restou voltar às origens, e aos filmes fora de cartaz, para regar um pouco as memórias dos sons, páginas e imagens que nos formaram e estão a nos formar, como dizia a música de Gil e Caetano em homenagem ao Cinema Novo.

Inconscientemente, as quinquilharias em páginas e mídia física dão a sensação de que, se não faltar energia, teremos ainda mantimentos para atravessar o deserto de ideias. É mais ou menos como responder na prática o que você levaria para uma ilha deserta – pausa no texto: a operadora de telefonia acaba de pedir para pegar leve no plano de internet porque as equipes estão reduzidas e a rede pode sofrer oscilações. Nada que não possa piorar.

Perto de completar um mês sem quase sair de casa, troco as lives e stories dos primeiros dias pelas histórias que até outro dia estavam mais perto do lixo do que da memória ativa.

A onda retrô virou a marca dessa quarentena, e ela parece querer me dizer algo até quando me desligo e ligo a TV.

Nesta semana, por exemplo, descobri que em 37 anos de vida eu nunca tinha visto um jogo completo do Pelé, de quem eu (achava que) sabia de cor os melhores momentos da vida e da obra. Como se estivesse diante de uma tela que já vi pronta, mas não sabia como foi pintada, fiquei embasbacado com o ineditismo da transmissão da TV com narração atualizada – eu poderia ter a fita do jogo, mas não estaria assistindo com uma multidão que se reúne na segunda tela do Twitter para trocar impressões de um jogo encerrado há 50 anos.

Pelé, em 90 minutos, era diferente de tudo o que eu pensava ou vi no cinema. Nas cenas para mim inéditas da Copa de 70, vejo um Rei que se enrosca, se perde, se atrapalha, cai, tropeça, isola, se levanta. A realeza não estava na capacidade, também real, de pegar a bola, deixar todo mundo no chão e fazer mil gols. Estava no preparo e no controle da situação. Na calma de quem estava pronto para achar espaços e solucionar mistérios a qualquer momento, e não o tempo todo.

Essa noção do tempo garantia a tranquilidade para fazer um pouco de tudo em campo, inclusive o óbvio – como tocar uma bola de lado, sem surtar por não ser genial em cada lance.

Apesar dos tempos impróprios, acho que alguma coisa nós, millennials em crise, podemos aprender com isso tudo. Se não, ao fim do dia, ao menos sabemos agora o que é poder gritar: "Corre, filho, vamos ver o Pelé jogar".

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.