Topo

Matheus Pichonelli

Novo normal, pãodemia, live: enquete revela termos que ninguém aguenta mais

Matheus Pichonelli

20/07/2020 04h00

(iStock)Dias atrás, depois de esbarrar pela quinta vez com a expressão "novo normal" na mesma edição de jornal, apelei ao DataRede –também conhecida como a lista de amigos nas redes sociais– para saber quais são os termos que as pessoas não aguentam mais ler ou ouvir na quarentena. Juntando Twitter e Facebook, recebi mais de 750 respostas*. Para minha surpresa, "quarentena" era uma delas.

Compartilho com vocês o resultado:

"Novo normal"

Existem 2,3 milhões de resultados no Google, inclusive uma música, sobre a expressão "novo normal", um jeito bonito, talvez preguiçoso, de dizer que daqui em diante podemos normalizar situações como: 

  • sermos desligados e recontratados no dia seguinte por um naco do salário anterior
  • viver em alerta permanente numa linha borrada entre horário de trabalho e de descanso
  • conciliar demandas profissionais e domésticas com os despachos da escola dos filhos
  • sair do banheiro correndo para responder a décima chamada de vídeo urgente do dia
  • aprofundar um distanciamento de classes e grupos sociais pré-pandemia e jogar para entregadores a tarefa de atravessar uma cidade onde não queremos mais pisar

Lida como "novo normal", a perenização de uma situação que deveria ser transitória não soa, mas deveria soar, como realmente é: precarização e sobrecarga. Que já estavam em curso e foram aceleradas com o selo forjado de "oportunidade".

"Temos que nos reinventar" 

Outro jeito bonito para dizer que vai ter desvio de função, sim. Tipo médico veterinário ser convocado para auxiliar na "linha de frente" (outra expressão lembrada no DataRede) dos hospitais. Mas não só. Uma amiga resumiu o drama: "Eu ouço muito sobre reinventar maneiras de fazer as tarefas das crianças, fazer brincadeiras e comidas. Preciso me reinventar como mãe e não tô conseguindo. Meu filho tem cinco anos e não tem com quem brincar e eu não consigo montar parquinho no meio da sala. Tenho dificuldade de alfabetizar mesmo com as tarefas online. Às vezes, tenho mesmo que deixar com a avó que não consegue lidar com computador. Minha criança tem muita energia e eu não me reiventei. Estou exausta".

Ressignificar

Dos mesmos criadores de reinventar e "novo normal", busca chamar de outro nome o que em outros tempos era só perrengue. Exemplo: não estamos em casa, à espera da vacina e de algum denominador comum entre as autoridades, com saudades de amigos, familiares e da vitamina D por contingência: estamos, em vez disso, "experienciando" um momento único de reencontro com nós mesmos e o núcleo familiar literalmente mais próximo. Pois na quarentena a única coisa que reencontrei foi o cadeado da velha bicicleta. Que já não posso pedalar.

"Vamos fazer uma live?"

Talvez, só talvez, ninguém aguente mais trabalhar olhando para uma tela e espairecer com amigos olhando para a mesma tela ao fim do dia. É mais ou menos como fazer churrasco na baia do escritório. O que foi de gente que disse não aguentar mais convites ou apresentações do tipo não está no gibi. Nem no WhatsApp.

Encontros remotos

Os entusiastas das lives que me desculpem. Mas ou é encontro ou é remoto. Os dois não dá.

"Vocês estão me vendo?"

O que antes era questão existencial a ser explorada hoje é referência por problemas técnicos. Praticamente um hino da quarentena que ninguém aguenta mais ouvir.

Geração P

Geração P, não. Geração millennial formada, frustrada e angustiada. Melhor que você, quarentener conformado.

Protocolo

É o equivalente sanitário de "princípios". Todo mundo tem, só não sabe o que é. Nem como usar.

Quarentena

Ainda faz sentido?, perguntou um leitor. No dicionário Houaiss, trata-se de um conjunto de medidas e restrições que consiste no isolamento, durante certo tempo (originalmente 42 dias), de indivíduos e mercadorias provenientes de regiões onde grassam epidemias de doenças contagiosas. E lá se vão quatro meses, com viés de alta. Ainda hoje espero o vizinho dos churrascos da rua de trás começar a dele.

Futuro disruptivo

O típico pleonasmo. Pergunte para a monarquia francesa pré-revolução.

"Pelo visto eu sou a única pessoa respeitando o isolamento, né?"

Sim, só você, o diferentão, a diferentona, pioneiros, seguidores incansáveis das normas da OMS, setas únicas do mouse tentando evitar o naufrágio do exército de lemmings ignorantes e desobedientes.

"Aderi à brincadeira" / "fui desafiado por fulano a postar…"

Pouca ideia, muito tempo e alguma conexão, os males da quarentena são.

Webinar

Tudo bem que as ferramentas e a multidão dentro de casa facilitaram o que antes levaria meses para ser organizado em termos presenciais. Mas já é humanamente impossível acompanhar ao mesmo tempo tanto debate educativo sobre o mundo que ninguém sabe exatamente pra onde vai.

Pós-normal. 

Uma variação do novo normal, só que piorada. Dizem que ainda não pegou. Mas vai pegar.

Resiliência

A maneira mais bonita de te convencer que, se você está sendo maltratado ou maltratada pelo mundo e perdeu a capacidade de sorrir, o problema é seu, e não do mundo.

Hidroxicloroquina

Legenda autoexplicativa.

"Saudade de (qualquer coisa), né, minha filha?"

O drama de uma entrevista feita pelo médico Drauzio Varella com uma presidiária trans ("solidão, né, minha filha?") virou meme pouco antes da pandemia explodir e na sequência ganhou legenda para todo tipo de saudade, da praia ao parque de diversões. Mas, segundo os nobres internautas, já deu. (E aqui nos solidarizamos com a filha de Drauzio, que contribuiu com a enquete dizendo não aguentar ouvir "minha filha" a cada mensagem ou telefonema).

"Vai ser no sigilo"

Não sabia o que era até uma leitora explicar: é o aviso quando convidam para festas clandestinas ou encontros que teoricamente não se enquadram em serviço essencial. Do tipo: ninguém vai caguetar nem nos expor nas redes. O caso da influencer que se contaminou e foi pra balada virou trauma, mas aparentemente ninguém aprendeu.

Pãodemia

Segundo me disseram, é a epidemia amplamente disseminada de imagens de pães caseiros que pipocaram nas redes em escala industrial.

"Não aguento mais"

Não, ninguém está aguentando. Mas será que o feed é o melhor lugar para essa conversa? Ou alguém está levando tudo isso tranquilamente a ponto de ter tempo e saúde mental de sobra para administrar as dores do mundo ao redor?

"É questão de autocuidado"

É uma espécie de "fuma, mas não traga" dos amigos e parentes teimosos quando você escancara os números da pandemia para dizer que não, não podemos participar da confraternização dessa vez. Como em tempos pré-pandêmicos, o constrangimento de dizer não às más ideias é todo seu.

"Desculpe não ser produtivo, é a minha 1ª quarentena"

Disse uma leitora: "parem com isso. Vocês nunca foram produtivos".

 

*Entre tantas respostas, muita gente indicou o podcast Copa de Buzzwords – Edição Quarentena, que listou e discutiu algumas das expressões mais batidas do momento. Preferi escrever o texto antes de conferir, o que farei ainda hoje. Fica o registro por aqui.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.