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O racismo da "socialite" escancara o que evitamos confrontar na vida

Matheus Pichonelli

29/11/2017 13h10

 

Nem uma, nem duas, nem cem. Na vida privada, quando ninguém está gravando, já perdi as contas de quantas vezes ouvi discursos parecidos com o da mulher que se apresenta como socialite e gravou um vídeo distribuindo ofensas à filha de Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso. Ainda assim aposto, com chance muito baixa de perder: a ofensa gravada e viralizada será aos poucos minimizada e atribuída a uma pessoa desequilibrada.

Tratar o caso como aberração ou fruto de um ressentimento inconfesso é a primeira brecha para que outras aberrações se manifestem. De novo. E de novo. E de novo.

É bom que venham à tona a indignação com o caso e a solidariedade ao casal, que a essa altura deve se questionar, não sem grande desespero, sobre como proteger uma criança de um mundo que permite tanta manifestação de ódio contra alguém que mal aprendeu a falar e a se defender.

Mas vale lembrar: nem sempre essa indignação se manifesta quando esse tipo de discurso não deixa lastro, não é gravado e, pior, é proferido por pessoas próximas, muitas vezes parentes queridos, muitas vezes colegas de trabalho com quem não queremos nos indispor.

Caso isolado por caso isolado, vimos recentemente um apresentador de TV manifestar de forma inapropriada, para não dizer outra coisa, quando não sabia estar sendo gravado. Por "isolado", até nos esquecemos que o chefe dele é autor de um clássico do cinismo dos privilegiados segundo o qual não somos racistas.

Pergunte ao pai da garota, ator da mesma emissora, se ele concorda. Ou para Marieta Severo, que recentemente disse se doer pelos tapas e constrangimentos sofridos pelo neto negro. Ou – para não ficar em exemplos de pais e avós brancos acostumados a ter a fala autorizada e visibilizada – a Taís Araújo, atriz negra que disse em uma palestra que a cor da pele faz as pessoas atravessarem a rua – e foi alto de troça de todo tipo, inclusive de diretor de uma emissora pública e de um secretário da Educação, prontamente disposto a acusar a sua "idiotice racial".

Mas basta alguém acusar essa diferença de tratamento em um país onde a maioria das vítimas de assassinatos é negra e a maioria dos doutores e universitários, branca, para ser logo acusado de vitimista, doutrinado, adepto do mimimi e do politicamente correto. É o mesmo país onde humoristas brancos fazem defesa apaixonada do direito de chamar alguém de "macaco" e, quando confrontados, se agarram no conceito de liberdade de expressão como um direito à liberdade de ofensa, seguida da lembrança do exemplo do velho Mussum que, Deus o tenha, não ligava para "bobagens" e fazia piada sobre a própria cor da pele.

Passamos, assim, como um trator sobre índices de extermínio e ocupação de cargos de prestígio, ora com omissão, ora com troça, para tratar como caso isolado a fala da socialite que mora longe e proferiu ofensas racistas contra uma criança. Como diz a filósofa e ativista Djamila Ribeiro, "no Brasil só o racismo dos outros incomoda".

Nos ambientes privados, já ouvi de pessoas nada desequilibradas comentários do tipo "cães não gostam de negros", "capricha no desodorante que você está cheirando preto".

Não curiosamente são as mesmas pessoas que todo santo dia 20 de novembro dizem que o mundo seria melhor se não houvesse dia da consciência negra, mas da consciência humana. Ou que veem no sucesso de pessoas negras, a quem tantos acusam a ocupação de um lugar indevido longe dos trabalhos subalternos, herança mais clara da escravidão que juramos enterrada, a pecha de um "negro metido". Ou garantem ser só brincadeira quando comparam as falhas dos brancos a "serviço de preto" e associam à cor negra tudo o que soa como condenável.

A exclusão começa na linguagem. É ela que organiza a forma como pensamos, mas estamos dispostos a repensar a forma como nos comunicamos ou seguiremos fechando os olhos e só abrindo a boca para berrar contra o politicamente correto quando nossas convicções são confrontadas?

Como homem, branco, de família de classe média, não tenho absolutamente nada a dizer sobre a dor de quem sofre tudo isso na pele. Mas não delimitar, por uma métrica própria, o que é ofensivo ou não quando alguém se diz ofendido pode ser um caminho.

Não fazer troça a quem relata este sofrimento, com infinitos Zzzzzzzzzzz toda vez que alguém a quem não costumamos ouvir reivindica o direito ao lugar de fala, é outro exercício sobre o qual ainda patinamos.

O outro exercício é deixar evidente, nos ambientes que frequentamos, que não aceitamos comentários discriminatórios, mesmo que a pessoa discriminada esteja longe – um dos componentes do racismo é a covardia, e a internet, com suas distâncias, é térreo fértil para covardes.

Outro ainda, e já que falamos sobre crianças, é evitar replicar dentro de casa, mesmo que por "brincadeira", discursos que reforçam a discriminação em um país já suficientemente desigual.

Ninguém precisa recriar um mundo paralelo, a exemplo do filme "A Vida É Bela", para escamotear o caráter cruel da realidade para as crianças que um dia enfrentarão o mundo, mas podemos ensinar desde cedo que a beleza se manifesta justamente na diversidade – esta que tentamos constranger até quando criamos padrões de beleza para distinguir quem tem cabelo liso e quem tem "cabelo ruim".

Que os filhos dessa geração sejam mais generosas que os filhos dos nossos pais e dos nossos avós. Ainda há muito por fazer. A indignação pode ser um começo. Mas não pode ser o ponto final.

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Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.