Quando o tema é gordofobia, o brasileiro não é solidário nem na morte
Matheus Pichonelli
22/05/2018 05h00
A personagem de Daniela Rincón no filme Paraíso, de Mariana Chenillo
"Agora ela finalmente conseguirá emagrecer. Parabéns, venceu na vida". "Se fizer adubo dá pra sustentar o Mato Grosso e o Paraná por cinco anos". "Só depois que ela quebrou o teto que lembraram dela?". "Só não entendo que tipo de corda ela usou para se enforcar e não quebrou".
Os comentários acima podiam ser lidos na página do Facebook de uma estudante de Icoaraci, distrito de Belém (PA), que se matou no último dia 16. Segundo jornais da região e uma página de alunos de sua escola, a jovem de 17 anos sofria bullying por estar acima do peso.
As mensagens mostram que, quando se trata de gordofobia, o brasileiro não é solidário nem no suicídio. O nome disso é ódio em estado puro.
Mas de onde vem tanta raiva pelo fato de alguém estar acima do peso?
Conversando com amigos que se interessam e já leram muito sobre o tema, percebi que para entender tanto ódio é preciso entender tanto culto ao chamado corpo ideal.
O corpo ideal é uma espécie de castidade contemporânea. Mais ou menos como a repressão sexual de tempos passados, este corpo precisa ser preservado a custa de esforços, limitações e contenção permanente dos desejos.
Tempos atrás, alguém sugeriu um exercício para pessoas acima do peso: sentar no centro de uma praça de alimentação para degustar um hambúrguer. Saberá então o que significa o olhar de horror e reprovação das pessoas ao redor.
O corpo magro, por sua vez, é o corpo troféu. É talhado em fórmulas matemáticas, impulsionadas inclusive por máquinas e aplicativos que indicam a distância entre calorias consumidas a cada passo na vida e na esteira com as calorias a serem ingeridas.
Pacto com o diabo
Este corpo destituído de gordura é também destituído de prazeres. Nesse ciclo, alimentação é reposição; é a morte do paladar e da socialização à mesa com base em proteínas e fórmulas desidratadas, frango grelhado e batata doce – os dois últimos, as únicas iguarias que o sobrinho de uns amigos se permitiu ingerir no intuito de secar em poucas semanas, tempos atrás.
O passo a passo reúne multidões de seguidores no Instaram. No pain, no gain, eles ensinam. É como um pacto do diabo: atingir o corpo ideal é abrir mão de quaisquer outros talentos, habilidades ou assuntos (tente conversar com alguém em permanente dieta e controle do apetite; se a pessoa souber falar sobre qualquer outro assunto que não a rotina de dieta e controle, dê os sinceros parabéns).
Mas o corpo ideal não é apenas um corpo destituído e premiado por ter se destituído de prazeres e pecados condenáveis ao olhar do grupo. É um corpo que move indústrias, das redes de academia às cirurgias estéticas. No Brasil, onde não há cenário para nossas vitórias pessoais que não tenha corpos sarados, praia (ou piscina) e verão, foram realizadas somente em 2015 quase 1,2 milhão de procedimentos do tipo.
Vai ver por isso ganhar peso com o avanço da idade ainda é métrica para calcular a nossa decência e a nossa decadência. Se está bem, está magro. Se não, o tempo não nos foi "generoso".
A demanda por vida saudável custa caro
Mas, diferentemente do que prega o senso comum, ser ou estar acima do peso meramente ideal não é sinônimo de doença. Há pessoas magras, por exemplo, com colesterol. E pessoas gordas que passam bem, obrigado – vivem, dançam, praticam esporte, brilham.
Apesar disso, "comer bem", por aqui, se tornou uma ideia a ser vendida. Vá a um varejão e perceba quanto custa esse ideal. Perceba também quem pode circular por ali.
Essa demanda por vida saudável custa caro e transforma o corpo ideal também em status. Nesta pirâmide, a base se alimenta de carboidrato, farinha, arroz, macarrão e feijão; no topo prevalece a obsessão por nutrientes; se não, será uma máquina de valor avariado na escala de prestígio no restante do grupo, principalmente se for mulher.
Como diz uma amiga: "O peso ideal é a nova virgindade. Se você for gorda, você não é aceita e não casa".
Nossos ódios contemporâneos
A mesma amiga pergunta: com a dedicação de tanto tempo, tanto recurso, tanto controle e tanto esforço para estrangular os prazeres e alcançar este padrão, quanto tempo sobra para filosofar, questionar a condição humana, contestar os modelos de explorações, as injustiças do mundo?
"Trabalhar e lutar por um mundo melhor é simplesmente incompatível quando dedicamos tanto tempo e tanta energia ao próprio corpo", define ela.
Essa dedicação é permanentemente "desrespeitada" por quem se nega a abrir mão de um deleite fundamental, o paladar, e por isso precisa ser destroçada pela sociedade que premia a contenção e reprime prazeres, mais ou menos como punia quem ousava ser minimamente livre aos prazeres do corpo, e não apenas um elemento de procriação, nos tempos da repressão sexual.
Isso diz muito sobre nossos ódios contemporâneos. E mais ainda sobre o estágio avançado da nossa falência como civilização.
Sobre o autor
Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.
Sobre o blog
Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.