O Brasil que eu quero tem Lulu Santos e Priscila Tossan na trilha sonora
Matheus Pichonelli
21/09/2018 04h00
Foto: reprodução
Só quem carrega no peito um pedaço de acém no lugar do coração ficou indiferente ao ver o choro de Lulu Santos diante da apresentação de Priscila Tossan no "The Voice Brasil". A carioca de 28 anos cantava "Eu sei que vou te amar" e levou o cantor e metade do país às lágrimas.
"Ela é arrebatadora! Você me fez chorar pela primeira vez nessa temporada, e foi por um bom motivo. Eu te amo!", disse ele.
Aquele choro era conexão pura entre duas pessoas cantando o amor e tudo o que atravessa uma canção de amor. Mas também era a conexão histórica entre dois artistas que, não fosse a música, e tudo o que a música permite (a começar pela visibilidade), seriam escrachados, em vez de aplaudidos, num país ainda ancorado no preconceito. Ela, uma mulher negra. Ele, um homem que recentemente anunciou o namoro com outro homem.
Na minha adolescência, se você quisesse ser alvo de bullying na escola, bastava confessar, em voz alta, na roda dos meninos, que ouvia Lulu Santos. Ele acabava de lançar "Eu e Memê, Memê e Eu", um álbum ilustrado por dois ursinhos de pelúcia e um coração.
Eu não tinha idade ainda para compreender como, em nossa cidade, as feridas do escravismo e as bases da religiosidade mais arcaica empunham escalas perversas de violência e hierarquias. Essas bases determinavam até mesmo o que deveríamos ouvir sem ser azucrinado.
Lá, estávamos (estamos?) mais perto do colonialismo do século 19 do que da utopia cantada por Lulu Santos em "Tempos Modernos", lançada no ano em que nasci.
Essa música devia ser o nosso hino nacional informal para tempos bicudos.
Repare na letra:
"Eu vejo a vida melhor no futuro
Eu vejo isso por cima de um muro
De hipocrisia que insiste em nos rodear
Eu vejo a vida mais clara e farta
Repleta de toda satisfação
Que se tem direito do firmamento ao chão
Eu quero crer no amor numa boa
Que isso valha pra qualquer pessoa
Que realizar a força que tem uma paixão"
Após a apresentação de Priscila, fiquei me perguntando: onde foi parar aquele futuro?
Pois na mesma semana em que a TV exibiu o que temos de melhor, mostrou também o que temos de pior, com torcedores do Atlético Mineiro provocando os rivais do Cruzeiro, pejorativamente chamados de "Maria", durante o clássico em Belo Horizonte: "Cruzeirense, toma cuidado, o Bolsonaro vai matar veado".
"Mas o mundo está muito chato", dirá o leitor que riu da brincadeira, assombrado com o assombro de quem não vê graça, se não perigo, na desgraça. Afinal, por que segurar o riso em um país onde uma pessoa LGBT morre a cada 19 horas, não é mesmo? Respeito à memória das vítimas é coisa de país atrasado, como a Alemanha.
Temos salvação?
Volto a Lulu Santos. Em outra música, ele constrói a melhor imagem da nossa contração diante do mundo ao confessar que às vezes se sente como "uma mola encolhida".
Hoje, estamos todos meio que assim. Mas é bom lembrar: na música, essa mola só se expande na presença do "outro". Com esse certo alguém, ele vai à luta, conhece a dor, se dá bem e não deseja mal a (quase) ninguém. Juntos eles cantam, alto e bom som: "consideramos justa toda forma de amor".
Músicas assim fazem lembrar que um dia tivemos futuro. E que esse país, em flerte agora com o passado mais sombrio, ainda tem jeito. A trilha sonora já temos.
Sobre o autor
Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.
Sobre o blog
Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.