Nossos filhos querem filmar o professor. E agora?
Matheus Pichonelli
07/11/2018 04h00
Foto: Getty Images
Crianças, venho do futuro e vou contar uma história para vocês: poucas coisas são mais prazerosas na vida do que encontrar um professor ou professora na rua, ou nessas vielas virtuais, e ser reconhecido, compartilhar alguma velha (boa) história, agradecer e ouvir/dizer quase simultaneamente "tenho orgulho de ter sido seu professor(a)/aluno(a)".
Que eu saiba, nenhum professor da minha turma precisa atravessar a calçada quando me vê, e a explicação talvez seja o fato de que, em casa, meus pais jamais tenham me colocado contra eles. Se havia algum conflito, e eles são muitos quando entramos na fase da rebeldia, da insegurança e das alterações hormonais, a premissa era sempre "não nos faça passar vergonha: vai pedir desculpa".
Por mais que a gente tenda a proteger e supervalorizar o talento de nossos filhos, essa ausência de retaguarda em casa ajudou a forjar nosso caráter. (Lembro de alguns colegas cujas mães entravam berrando pelos corredores toda vez que era chamada a atenção dos filhos e ameaçavam trocar de escola. Resultado: eles, agora adultos, ainda aguardam o berreiro delas quando entram em conflitos afetivos, profissionais, familiares).
Meus pais me ensinaram a desconfiar de muitas coisas dessa vida: de convite de estranhos, da programação de TV, das propagandas. Mas não de professores.
E orientar os filhos a registrar, com os celulares, o que dizem os professores em sala de aula é, em si, uma aula do avesso. Ela mina, em primeiro lugar, a confiança que deveríamos ter com quem estudou mais e têm mais a ensinar do que nós. E reforça uma falsa relação comercial, mesmo em escolas públicas: pagamos, com mensalidades ou impostos, para receber o que desejamos, não o que precisamos aprender.
Uma relação mediada pela câmera da desconfiança jamais será uma relação honesta. Diferentemente daquilo que cobramos dos professores, a câmera não é neutra. Ela "flagra", distorce contextos, alimenta patrulhas e joga para uma jaula de pessoas enfurecidas conflitos que poderiam ser resolvidos no ambiente adequado, de debate e esclarecimentos.
Essa sensação de vivenciar um Big Brother involuntário tem levado muitos amigos professores a adoecer, desenvolver transtornos, desanimar. A possibilidade de ter a aula cerceada pode ser a última barreira de uma realidade marcada por estruturas precárias, salários baixos, pressões por resultado, agressividades.
Em 2018, todo mundo deu opinião política, ainda que não partidária, em algum momento da vida pública ou privada: familiares, artistas, juízes, procuradores, policiais, militares, religiosos, atletas, apresentadores. Só o professor não pode. Por quê?
Talvez o problema não seja a opinião, mas ter outra opinião diferente daquela que parece se cristalizar no peito da sociedade brasileira que agora se alimenta de memes, frases curtas, áudios de origem duvidosa e programas apelativos de TV.
Por isso nunca fomos tão dependentes de livros, dos professores, da ciência: são eles os responsáveis por filtrar e contextualizar informações e transformá-los em conhecimento. E iluminar caminhos é se contrapor a quem mais se beneficia da ignorância e da escuridão – no escuro é bem mais fácil espalhar o medo infundado e ganhar votos.
O retrato da nossa incoerência é a professora doutrinadora até o fio de cabelo eleita deputada que vai para a sala de aula com a camiseta de seu candidato, posta foto com armas nas redes, mas jura que quem doutrina é quem fala de empatia em sala de aula.
Para eles, doutrinador pode ser qualquer um: não há qualquer revolta quando alguém agride ou ridiculariza homossexuais nas escolas. Mas experimente dizer que esse constrangimento não é legal.
Se você realmente valoriza a educação e se preocupa com as condições de trabalho do professor, não ensine seu filho a trata-lo como um inimigo que não tem direito à opinião e precisa ser filmado para "aprender".
Professores não precisam ser patrulhados. Precisam ser ouvidos. E tenho dúvidas de todo movimento que diz o que é bom para a sala de aula sem ouvir o professor.
Dito isso, eu adoraria saber o que meu ídolo, o professor de literatura André Luis Guerra, teria a dizer sobre o Brasil atual. Um acidente de carro, em 2002, me tirou para sempre essa possibilidade. Foi ele quem teve a generosidade de ler minhas primeiras crônicas, que toda semana me trazia um livro fora da lista de obras obrigatórias do vestibular, que trocava ideias sobre bandas de rock, e que prometeu escrever o prefácio do meu primeiro romance, que não teve tempo de ler.
Hoje, por defender a plenos pulmões um país mais livre, mais poético e menos burro, seria chamado doutrinador.
O Brasil que ele me mostrou era o país de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector. Esse país está morrendo aos poucos. É nossa tarefa não permitir.
Sobre o autor
Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.
Sobre o blog
Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.