Vai desocupar o imóvel alugado? Cuidado para não enlouquecer
Matheus Pichonelli
29/11/2018 14h31
Cena do filme "O Iluminado"
Antes de mais nada: se você acaba de se mudar para alguma casa ou apartamento alugado, coloque em uma lista, e registre aos responsáveis, todos os problemas encontrados no local após a vistoria de entrada. De maçaneta à chave que não funciona.
Tudo isso vai ser cobrado na saída.
Mesmo que você não tenha qualquer responsabilidade na avaria ou tenha providenciado diversas outras melhorias no imóvel ao longo do tempo.
Dito isso, preciso confessar em voz alta: tenho 36 anos e ainda me admiro com as pequenas grandes perversões do chamado micropoder.
A gente passa a vida empunhando espadas contra o Estado, o governo, o multilateralismo, o Foro de São Paulo, a mídia, os algoritmos produzidos no Vale do Silício e, no entanto, na lida do dia a dia, seremos sempre ratos de laboratório negociando um jeitinho de não ser comido por quem está na ponta de toda a cadeia produtiva.
No caso, aquele burocrata que você torce para ir com a sua cara enquanto ele esfrega os óculos engordurados na manga e repete as duas únicas frases que decorou na vida: "Estou só cumprindo regras" ou "Não posso, mas vou quebrar o seu galho".
Cuidado com esse sujeito: ele parece amigável, fala como amigo, age como amigo, mas no fim quer apenas vender dificuldade para cobrar facilidade.
As visitas técnicas de saída do imóvel são terreno propício para esse tipo de situação. Passamos por isso recentemente.
Funciona assim: na vistoria de saída, um sujeito do tipo cara-crachá coloca o nariz em cada linha do imóvel para saber se tudo está de acordo com o papel do relatório de entrada.
Não importa que, na escavação provocada pelo tempo entre uma demão e outra, ele se depare com uma pintura rupestre anterior a Colombo atestada por arqueólogos: se não consta do relatório, o desenho será seu.
Ao fim da visita, o morador recebe uma lista de afazeres para entregar um imóvel sem irregularidades – e a ênfase nesta última palavra faz qualquer santo se imaginar algemado na próxima fase da Lava Jato.
No nosso caso, a lista foi entregue por um jovem que pediu "apenas algumas coisinhas". (Pintar toda a área externa e o TETO da garagem, por exemplo).
Na despedida, ele diz "VALENDO" e você dá início a uma corrida maluca para encontrar material e mão-de-obra enquanto o tempo do aluguel segue correndo. Se você já estiver em outra casa alugada, azar: quanto mais tempo levar, mais tempo vai pagar dois alugueis.
É o convite para a falência. (Dica número dois: o que der para adiantar com as caixas de mudança no caminho, adiante).
No nosso caso, uma equipe ninja realizou todo o serviço em três dias. Faltava APENAS combinar com a imobiliária uma segunda e supostamente definitiva vistoria. (se você já soltou um "kkk" até aqui, você já sabe do que estou falando).
Então você lembra que mora no Brasil. E que, se sua necessidade estiver no caminho de um feriado prolongado, azar de quem vai pagar todos os dias o aluguel de uma casa parada.
No dia agendado, surpresa: quem vem conferir se a lição de casa foi bem-feita não é mais o jovem da última visita, e sim outra pessoa. Que, com o olhar afiado de quem vai liberar a pista da marginal que caiu, pede mais uma série de ajustes extras que não estavam combinados, entre eles consertos de coisas realmente mínimas e já quebradas antes da mudança.
Protestamos.
-Só cumpro ordens. Fale com minha chefe.
Enviamos, então, as fotos do início da locação para uma espécie de STF da imobiliária. Por e-mail.
Passamos, assim, mais três dias em diálogos kafkianos do tipo:
-Bom dia, a senhora viu nosso e-mail? (Quinze minutos de espera)
-Vou ver.
-Boa tarde, a senhora viu nosso email agora? (Vinte minutos de espera)
-Vi, mas preciso falar com o dono.
-Boa noite, a senhora já falou com o dono? (Vinte e cinco minutos de espera)
-Vou falar.
O dono. O dono é uma entidade de quem não sabemos o rosto e que, como não nos conhece, não tem a menor dúvida de que somos seres pervertidos que passaram o tempo de contrato promovendo raves com open house de crack entre a pia e o banheiro dele.
Nossa relação é mediada por uma entidade que, aparentemente, não gosta de atender telefonema nem responder e-mail. Nem de resolver as coisas em tempo hábil.
E o veredito sobre as contestações de quem pagou todos os meses o aluguel em dia (Matheus, você não fez mais que a sua obrigação) é definido não pela palavra de quem morou ali e pode contar a experiência (donos e inquilinos, no caso), mas por fotos tiradas por celular em diferentes momentos da história e que se tornam objeto de discussões matemáticas e estéticas intermináveis.
-Só estou cumprindo ordens – ouvimos, pela enésima vez.
Nova gincana, aluguel correndo, que tal entregar as chaves e cada um viver feliz em seu novo canto alugado após a TERCEIRA vistoria? (A gargalhada está liberada).
Chega a vistoria.
-Mas e esse trinco?
-O que tem esse trinco?
-Vai precisar arrumar.
-Mas esse trinco nunca funcionou.
-Vocês reclamaram quando mudaram? Se não, não tem como provar. Vai ter que arrumar.
-Mas por que vocês não pediram isso na primeira vistoria que fizeram há QUINZE DIAS.
-Vocês deviam saber.
(Volte ao primeiro parágrafo. De nada).
Cada dia, e cada pedido a conta-gotas, é mais dinheiro no caixa de todo mundo, menos de quem paga aluguel.
Nessas horas, lembro das palavras do meu pai: só fazem com a gente o que a gente permite. E, claro, explodo. E explodo duas vezes quando ouço "calma, você está nervoso". (Gaslight. Procurem essa expressão no Google e entendam).
Dica final: quer sair da casa em paz com as chaves entregues? Aceite o prestador de serviço indicado por quem não quer que você saia.
Saio da velha casa derrotado, com a irritação acima de qualquer item da memória afetiva.
Aquele jogo de empurra é um microcosmos de um país: um país em estado irritadiço, à beira do colapso mental, mediado por prontuários, relatórios, vistorias, desconfianças, sem tempo para o café, para bons dias, boas tardes, dominado por pessoas cansadas, desmotivadas, insatisfeitas com o que fazem, com as voltas eternas dentro da própria burocracia e tentando ganhar alguma coisa em cima de alguém, ou por sacanagem, ou por incompetência.
Um país onde é preciso, de vez em quando, deixar a elegância para falar alto e evitar que passem com um trator na nossa cabeça.
De um jeito ou de outro, lidamos com isso diariamente, em uma atividade contínua de definição de limites para cobrar respeito antes de ser engolido por estruturas mediadas por robôs de tela de cristal ou de carne e osso.
Como entregar as chaves de uma casa desocupada eu já aprendi (e espero que a experiência contada aqui sirva também de alerta).
Falta saber como não enlouquecer.
Sobre o autor
Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.
Sobre o blog
Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.