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Janot x Mendes: quando as armas viraram nossa maior instituição?

Matheus Pichonelli

30/09/2019 04h00

Cena do filme "Bacurau"

O ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot revelou na última semana que, tempos atrás, revoltado com algumas ilações feitas pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes contra sua filha, decidiu entrar armado no STF para matar o ofensor. Ficou a dois metros dele com o dedo no gatilho, mas desistiu após receber um "sinal".

Não tem nada mais sintomático em um país onde quase 60 mil pessoas morreram em 2017, ano em que o chefe do Ministério Público por pouco não colocou o plano de assassinato em ação.

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A revelação, como não poderia deixar de ser, repercutiu como uma bomba no noticiário político-policial. Afinal, se o procurador-geral da República não acredita na mediação da instituição da qual é uma das autoridades máximas, quem é que vai acreditar? O tiozinho perdido na vida e embriagado no bar do beco?

A comoção diante da história é compreensível, mas não deveria causar surpresa em um país onde um candidato a presidente é eleito fazendo arminha com a mão.

O revólver é, hoje, a maior instituição nacional.

É com ele que o futuro embaixador dos EUA desfila quando participa de programas no SBT ou visita o pai em um hospital.

Foi a ele, e não à lei, que o procurador-geral pensou em recorrer para acertar os ponteiros com um desafeto em busca de justiça.

É com ele que boa parte da população sonha em se proteger de uma violência cuja natureza ela mesma desconhece.

Em artigo recente publicado na revista Época, o ex-investigador da polícia e especialista em segurança pública Guaracy Mingardi mostrou, com base em dados de 2017, ano em que Janot por pouco não ampliou as estatísticas, que o chamado cidadão comum no Brasil tem 20 vezes mais chance de ser assassinado por alguém de suas relações do que por um ladrão durante um roubo.

Minoria nas esferas de poder, as mulheres são vítimas preferenciais desse patrimônio à queima-roupa. De acordo com o Dossiê Mulher, elaborado pelo Instituto de Segurança Pública do Rio, 75% das tentativas de feminicídio e 57% das mortes são cometidas por companheiros ou ex-companheiros das vítimas. Quase metade dos homicídios (47,2%) ocorreu com armas de fogo, e 9,7% com as chamadas armas brancas (facas, facões, etc).

Nas cabeças dos salvadores da nação, basta aumentar a dose do veneno com nome de remédio para curar o doente.

Neste nó entre barbárie e civilização reside o imaginário da construção da masculinidade.

Uma busca no Google pelas palavras "filmes" e "honra" basta para saber como a violência armada é alimentada diariamente com o signo da bravura e do destemor desde os tempos do faroeste, um gênero que romantizou o massacre ameríndio e alimenta até hoje o delírio dos jovens caubóis de asfalto. Nossos heróis desde a infância são personagens atormentados, violentos e acima da lei.

No Brasil atual, onde uma vereadora é metralhada em via pública sem que, um ano e meio depois, ninguém saiba por que nem a mando de quem, é bom desconfiar quando embola a voz para dizer que as instituições estão funcionando.

A morte por um fio, a dois metros de um procurador armado, de um juiz do Supremo é exemplo mais bem acabado de que entre a civilização e a barbárie está apenas um gatilho emperrado.

Isso dá a dimensão da fragilidade de um sistema jurídico que contrapõe toneladas de boas intenções com poucas gramas de exemplo.

No filme "Bacurau", a seita supremacista que pousa no sertão para um safári humano fala das armas como se fossem pessoas e de pessoas como se fossem objetos. É o primeiro passo para o extermínio.

No mundo real, os marmanjos iludidos da própria virilidade, que passam a vida erotizando as armas e seus calibres, são os mesmos que precisam recorrer a fake news para atacar uma jovem ativista ambiental de 16 anos que ousou dizer em público que nosso modo de vida, predatório e expansivo, nos levará ao colapso.

São os mesmos que levam 72 horas para se pronunciar sobre a morte de mais uma criança em meio ao tiroteio estimulado pelos senhores da guerra que prometem combater o crime atirando na cabecinha.

Inteligência? Prevenção? Equilíbrio?

Que nada.

A regra entre marmanjos é uma só. Quanto maior o calibre, maior a covardia.

O alvo somos nós.

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Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.