Fantasma do “politicamente correto” é a pior fantasia do Carnaval
Matheus Pichonelli
24/02/2020 04h00
Foto: iStock
Não é exatamente uma lei, mas, à medida que uma discussão se alonga, a probabilidade de alguém sacar do coldre algum argumento relacionado ao "politicamente correto" é praticamente 100%.
No meu caso, quando o termo aparece, é a senha para sair à francesa de qualquer discussão – gosto delas, embora tenha discutido cada vez menos. Pago um caminhão para não entrar e dois para sair dos debates quando as palavras "politicamente" e "correto" vêm à tona; surradas, elas já não dizem nada, embora sirvam de muleta para todo tipo de incômodo, como os relacionados a fantasias de Carnaval, os incômodos com incomodados com as mesmas fantasias e também contra um suposto melindre que viria no DNA de todos os nascidos após 1980, dos millennials ao bebê que já veio à luz carrancudo na semana passada.
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Posso correr o risco de exagerar, mas acho que essas duas palavras são peças-chave para entender a moral de algumas lideranças políticas sem qualquer outro lastro. Em 2016, os EUA escolheram como presidente um ídolo dos fóruns do tipo chan, onde ofensa é senha obrigatória; um ídolo fanfarrão e errático que simbolicamente liberou uma multidão das amarras de não poder dizer o que vêm à cabeça contra adversários, militantes e atrizes – apagando um pouco mais a cada dia aquela risca de giz que Freud chamou de civilização, tomada por regras sociais que impedem que nos destrocemos uns aos outros com atos, palavras e desejos.
No Brasil, como quem copia uma receita médica, a tempestade perfeita das crises política e econômica fez com que boa parte dos habitantes dissecasse o corpo enfermo do tecido social e concluísse: "o que está matando este país é o politicamente correto".
Você ouve o diagnóstico à esquerda toda vez que o debate sobre um ambiente mais diverso, a começar pela vida partidária, entra em pauta.
E ouve também à direita mais militarista, que vê malemolência demais e rigidez de menos em tempos de muitos direitos e poucos deveres, de muita fala e pouca ação, como gostam de espalhar.
Por esta versão, o que falta para o país voltar aos trilhos não são ideias, mas umas boas palmadas no bumbum dos brasileiros acomodados e sem respeito às figuras de autoridade. (Ah, sim, a impossibilidade de socar os próprios filhos de acordo com as próprias convicções é um incômodo constante na pauta de reivindicações dos avessos ao tal politicamente correto.)
Esse imaginário previa que era preciso colocar no topo da pirâmide um pai rígido, com fivela no cinto, que não desse ouvidos a quem problematizasse as fiveladas com base no Estatuto da Criança e do Adolescente ("joga no lixo"), do Desarmamento ("arma é direito do cidadão de bem"), da Declaração Universal dos Direitos Humanos ("protege vagabundo"), das ações afirmativas e de proteção a minorias ("coitadismo e perversão").
Jair Bolsonaro se apressou em se apresentar como este pai, embora sua trajetória errática desse ao seu discurso sobre moralismo e moralidade a mesma excelência das flexões mambembes que costuma apresentar em suas visitas aos quartéis.
Pouco importa.
Para muitos, a eleição de Bolsonaro, como foi a de Donald Trump nos EUA, era uma senha para pegar as fivelas e descalçar os sapatos sociais exigidos pela nova dança de salão dos relacionamentos baseados numa comunicação não-violenta e negociada que não aceita botinadas nem imposições de cima a baixo. Todos, afinal, estariam na mesma pista. Inclusive empregadas domésticas com direito a férias e 13º.
Era pedir demais?
Era.
As queixas já formavam fila entre os adeptos do estabelecimento de uma ordem que de ordem não tinha nada. O ranço era que estava ficando chato demais ouvir tantos revides diante de certas palavras, certas expressões, certo tipo de humor mais imbecil do que incorreto.
A bronca serviu também de paredão em defesa dos tratores que não podiam destroçar florestas sem ouvir a chiadeira dos ecochatos.
Bolsonaro, querendo ou não, representou essa demanda por desamarrar os cadarços de relações mais cuidadosas e menos ofensivas com o interlocutor, cada vez menos disposto a aceitar patadas e hierarquias do tipo "eu falo, você ouve e todo mundo se cala".
O resultado é uma perda constante do poder de colegiados, comissões, grupos de debate e da abertura a divergências dentro da própria presidência, que vira e mexe extrapola os muros do Planalto e questiona que raio de politicamente correto é esse que não permite a um ministro general mandar o Congresso se foder.
Ou que raio de politicamente correto é esse que não deixa o ministro da Economia comemorar a alta do dólar que acabou com a festa da empregada?
Que não permite ao secretário de Comunicação deixar com a mulher o comando da empresa que tem contrato com as mesmas emissoras para as quais ele negocia publicidade oficial?
Que exige de um ministro da Educação que faça bom uso da língua portuguesa?
Que persegue o filho deputado do presidente só porque ele endossa mentiras contra jornalistas nas redes e manda colegas mulheres rasparem o sovaco?
Que impede outro filho, agora senador, de empregar a mãe e a mulher de miliciano em seu gabinete? Não pode agora?
Que não deixa o presidente fazer trocadilho sobre furos e ilações sexuais contra repórteres mulheres nem chamar deputadas de "vagabundas"?
A cada patada, é possível ouvir uma multidão extasiada diante de um ringue de MMA, como se finalmente alguém se dispusesse a enfrentar as formalidades, inclusive institucionais, que travavam o país e dar uma banana, literalmente, para a dignidade de quem está no caminho de palavras e tratores, a começar pelas populações indígenas que pretende alienar das decisões do próprio território.
Nos resumos dos embates, transbordam nos canais de YouTube chamadas com linguagem bélica: "socou", "humilhou", "colocou em seu lugar", "falou a verdade".
É disso que o povo gosta, dizem.
Decoro?
Coerência?
Equilíbrio?
Tudo entra no mesmo balaio do "politicamente correto", que não aceita amarras, age e fala como quer e ri de quem reclama.
Curioso apenas é que essas mesmas risadas viram chilique quando a piada é sobre eles, suas crenças ou devaneios religiosos – como o de que o salvador é só dele, e de mais ninguém.
É que os fãs do politicamente incorreto topam qualquer brincadeira. Menos as que questionam suas fantasias relacionadas a masculinidade e delírios de hierarquia.
É isso que o povo quer, garantem, e ninguém mais estranha quando o guarda da esquina, empoderado e legitimado, bota capuz, pega em armas, manda fechar o comércio e atira contra quem avança do outro lado com retroescavadeira porque, garantem, não se leva flores ao inimigo.
Os brutos tomaram o poder. Em breve restarão sozinhos em terra arrasada. Podem ser estúpidos e não ter qualquer ideia para colocar numa folha de papel A4. Mas pelo menos acabaram com o politicamente correto.
Sobre o autor
Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.
Sobre o blog
Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.