Weintraub ganha aula de educação de historiador neto de chinês
Matheus Pichonelli
15/06/2020 04h00
Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Não fosse Jair Bolsonaro, Abraham Weintraub seria hoje um obscuro professor universitário que atribui ao boicote dos colegas e ao marxismo cultural as culpas da própria nulidade intelectual.
Uma hora dessas, estaria consumindo teorias da conspiração pelo WhatsApp e desinformando em paz seus parcos seguidores com correntes sem pé nem cabeça e sem provocar danos às placas tectônicas da opinião pública.
Nomeado ministro da Educação, em abril do ano passado, ele hoje faz do posto uma cruzada do ressentimento contra todos os que não reconheceram seu talento como pensador. Busca provar que estavam todos errados tratando a língua portuguesa a pauladas, repostando piadas que não fariam rir um estudante de quinta série e chamando a mãe dos seguidores de "égua sarnenta e desdentada".
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Weintraub se tornou autoridade na área da educação sem saber usar o c cedilha, mas isso em nada arranhou a autoestima de quem celebrou um ano no cargo fazendo chacota com a China e a população chinesa.
Com referência ao Cebolinha, personagem de Maurício de Sousa que troca o "r" pelo "l", o ministro escreveu em seu Twitter:
"Geopolíticamente, quem podeLá saiL foLtalecido, em teLmos Lelativos, dessa cLise mundial? PodeLia seL o Cebolinha? Quem são os aliados no BLasil do plano infalível do Cebolinha paLa dominaL o mundo? SeLia o Cascão ou há mais amiguinhos?".
O deboche sobre a dificuldade da comunidade chinesa em se expressar na língua portuguesa trazia de brinde uma acusação: a de que a China, onde foi registrado o primeiro caso de coronavírus, seria beneficiária de um rearranjo geopolítico pós-pandemia. Tipo dominar o mundo.
Weintraub sabia que não estava no zap da família e, por este motivo, tomou uma reprimenda da embaixada da China no Brasil, que classificou as declarações do ministro como "absurdas e desprezíveis" e com "cunho fortemente racista e objetivos indizíveis, tendo causado influências negativas no desenvolvimento saudável das relações bilaterais China-Brasil".
A embaixada já havia criticado o deputado Eduardo Bolsonaro após o filho do presidente comparar a pandemia do coronavírus ao acidente nuclear de Chernobyl.
Por causa das declarações, o historiador Vinicius Wu, neto de um chinês que se mudou para o Brasil em 1925, entrou no STF (Supremo Tribunal Federal) com uma notícia-crime para apurar se o ministro cometeu ou não racismo em sua postagem. Weintraub ganhou um processo e uma aula.
"Lembro que meu avô gostava muito do Brasil, sentia-se acolhido. Evidente que também vivia processos de discriminação pontuais. Principalmente essa coisa do idioma. É tão difícil para o chinês absorver o português. Ele absorveu tão bem o português. Me veio à memória ele falando português, as dificuldades", disse Wu à repórter Catia Seabra.
Em janeiro, antes de a Organização Mundial da Saúde declarar a pandemia do coronavírus, a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado escreveu no The Intercept Brasil uma coluna intitulada: "Coronavírus expõe a nossa desinformação sobre a China, o maior fenômeno econômico dos nossos tempos".
Para ela, tanto a desinformação a respeito do vírus quanto o próprio desinteresse sobre a China eram sintomáticos de uma era de pobreza informacional no âmbito intercultural. "Só falamos do vírus de forma egoísta: quando o risco e o pânico batem em nossa porta. Quando a ignorância impera como um projeto nacional, a tendência é que a xenofobia, os preconceitos e as caricaturas reinem sozinhos", escreveu.
Dito e feito.
Num momento em que EUA medem forças com a China, tendo no centro a disputa pela ponta de lança das tecnologias das próximas décadas, como a 5G, os pupilos brasileiros emprestam o bodoque numa briga de cachorro grande em que só têm a perder.
Pelos serviços prestados, Donald Trump, que até outro dia enchia a boca para consagrar a expressão "vírus chinês", restringiu a entrada de brasileiros em seu país e ainda citou o Brasil como mau exemplo no combate à Covid-19. Um típico caso de amor não correspondido.
Tudo isso já seria ridículo não fosse um detalhe: a China é atualmente, o maior parceiro comercial do Brasil. Só em 2018, 26,7% das exportações brasileiras tiveram o país asiático como destino e os investimentos, por aqui, somaram US$ 79 bilhões entre 2003 e 2019.
Para quem prometia um ministério "técnico" e livre de ideologias, o fanatismo míope de Weintraub e companhia mostra que não é só a vergonha que está em jogo quando se perde o parceiro estratégico mas não a piada. De mau gosto, diga-se.
Dias atrás, o ministro tuiteiro que queria aproveitar a pandemia para interferir na escolha de reitores e dizia ter nojo de expressões como povos indígenas e ciganos, foi intimado a prestar depoimento à Polícia Federal sobre seu desejo de prender ministros do Supremo Tribunal Federal. Desta vez o falastrão entrou mudo e saiu calado.
Sobre o autor
Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.
Sobre o blog
Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.