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Matheus Pichonelli

O menino na cela do Piauí é o Brasil real que ninguém quer enxergar

Matheus Pichonelli

04/10/2017 14h48

 

No presídio do município de Altos, no Piauí, um garoto de 13 anos foi encontrado na mesma cela com um preso acusado de estupro de vulnerável. Estava sem camisa e escondido embaixo da cama. Ao ser tirado de lá, relatou que teve parte do corpo tocada pelo homem.

O garoto foi levado até o presidio pelos pais, amigos do detento, um dos quase 400 em um espaço para cerca de 200. O pai se disse surpreso e enganado pelo amigo detido. Achava que ele estava ali "só" por ter matado uma mulher.

O caso acontece no momento em que, horrorizada pela presença de uma criança em uma exposição (sinalizada e acompanhada da mãe) com um homem nu, muita gente de bem decidiu se engajar na defesa da família e das crianças deste Brasil de meu Deus. Como? Expondo a imagem da criança e sua mãe em uma terra de lobos chamada internet.

Se da casa das melhores famílias ao interior do Piauí todas as rotas levaram ao silêncio, o episódio do museu em São Paulo foi a fagulha para que saudosos do regime militar, aquele que protegeu torturadores, estupradores e terroristas de Estado, como os do Caso Riocentro, defendessem, inclusive nas tribunas da Câmara, surra, tortura e chicotada em artistas, visitantes e simpatizantes de galerias artísticas.

Seria cômico, não fosse trágico, que os estandartes da moral sejam os mesmos que, quando não são flagrados assistindo vídeo pornô no celular, vociferam quando ouvem falar de cultura de estupro. Ou que sejam os primeiros a pedir a redução da maioridade penal para proteger os adultos dos seus adolescentes – ignorando que somente em 2015 mais de 17,5 mil crianças e adolescentes foram vítimas de violência sexual no país, quase 50 por dia, segundo números do Disque-Denúncia Nacional, o Disque 100. Isso sem contar a exploração do trabalho infantil e outras formas de violência física e psicológica.

Basta uma leitura atenta a esses casos para saber que a perversidade não está nos museus sinalizados, e sim dentro de casa, nas famílias, nos espaços sob a custódia do Estado e até nas igrejas, como as de Arapiraca, mencionadas no filme Spotlight, sobre o acobertamento da Igreja Católica a casos de pedofilia pelo mundo.

Este país se horroriza com a nudez artística, mas acha engraçadas piadas na TV do tipo "se viu o penta aguenta" e romantiza a palavra "novinha" em letras de música e buscadores de sites pornô.

Enquanto nomes como Alexandre Frota replicavam nas redes o escarcéu em frente a um museu, o Brasil real colocava na mesma cela, a quilômetros dali, muitos dos elementos que nos negamos a reconhecer como nossos: a negligência familiar, a violência infantil e a falência do sistema carcerário, para o qual idealizamos o trancamento de todas as nossas mazelas e pessoas indesejadas. Além, é claro, da pobreza, que não costuma frequentar o Ibirapuera nem as redes sociais, a não ser quando pede para vigiar os nossos carros.

Se alguém quiser de fato compreender a dimensão trágica da infância e da juventude brasileira e os traumas de quem de fato a vivencia tem no caso do Piauí uma boa trilha para começar a mudar, de fato, uma realidade até hoje intocada. Para isso é preciso um pouco mais do que boa vontade. É preciso sujar as botas. E desembaçar dos olhos o nevoeiro da hipocrisia.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.