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Matheus Pichonelli

Para se livrar de uma obsessão é preciso inventar uma outra?

Matheus Pichonelli

12/04/2018 04h00

Foto: Gety Images

Sou obcecado por futebol desde que me conheço como bicho.

Isso não melhorou com a idade. Pelo contrário: quem me vê chegar em casa, quieto, com cara de bom vizinho, não imagina o que sou capaz de gritar da janela ou no Twitter em dias de jogo.

Não sei que nome dão a isso hoje em dia. Em outros tempos diriam que sou bitolado.

Ou era.

De um tempo pra cá, comecei a desconfiar que estava bitolado por um teatro e não um esporte; que existem mais coisas entre a bola e a arquibancada do que supõem os nossos hinos de torcida, e essas coisas podem ser determinantes em um resultado – um juiz mal-intencionado, um acordo (não) fechado com essa ou aquela emissora, negociatas de bastidores, interferência da patrocinadora etc.

Era (é) preciso fazer como Erasmo Carlos e acabar logo com isso. Como estou em uma idade em que qualquer crise de estresse me leva à gripe ou à queda de cabelo, decidi preservar as energias e sair de grupos de torcedores no Whatsapp e descurtir páginas de jogadores, times, blogs de torcedores e perfis de programas esportivos no Facebook e Instagram. Sim, sou desses. Ou era. O próximo passo é cancelar o Pay-Per-View e esquecer as incursões às arenas, caríssimas, de vez.

O problema foi perceber que, para esquecer uma obsessão, eu precisava desenvolver uma outra.

Pensei então em começar a correr. Fazer parte de algum grupo de atletas de fim de semana. Transformar as horas de jogo em tempo útil e completar ao menos uma meia maratona até o fim do ano. Poderia aproveitar e me condicionar também a viciar em outro tipo maratona, das séries que nunca consigo assistir. Ou de filmes.

Poderia desenvolver compulsão por academia. Ou em fotografar tudo o que faço e compartilhar nos stories do Instagram (para mostrar os resultados da academia). Ou em comida. Bebida. Nicotina. Drogas pesadas. Carros. Viagens. Sexo. Videogame. Jogos de aposta. Estudos. Títulos. Coleções. Poderia virar até mesmo um daqueles pais compulsivos que postam tudo o que os filhos fazem nas redes, até o que não tem graça ou importância.

Qualquer coisa para não perceber que o problema, no fundo, é tédio – ou o medo do tédio – da rotina, das leis, da vida em sociedade, do trabalho. Até mesmo para não deixar o trabalho ser a nossa única obsessão na vida.

Puxando pela memória, descobri que a obsessão que alimentava por esporte já servia para esquecer outras. Estava bitolado em futebol porque precisava desbitolar de política, um outro teatro com gritos e ofensas muito parecidos com os da arquibancada. E só bitolei em política quando decidi não bitolar em religião.

Futebol, política ou religião não se discute, dizem os antigos, pouco acostumados a discutir em público. Somos deseducados ao diálogo desde cedo. E, em vez disso, torcemos, xingamos, adoramos, juramos devoção e amor cego, passamos mais tempo acusando erros de quem ainda não se converteu do que tentando entender o que nos leva a bitolar, desbitolar, bitolar de novo. Nossas obsessões movem e financiam o mundo.

O que queremos, no fim, é um sentido. Um senso de pertencimento. O acolhimento a um grupo. Queremos alguém que nos faça acreditar e se proponha a organizar o jogo caótico da vida (e não pensar em seu ponto final) e esgarce as amarras da nossa rotina ordinária, de dúvidas, dívidas e cansaços produzindo esperanças, narrativas, superação, projetos coletivos, exemplos de que o esforço e a disciplina valem a pena, promessas de dias melhores e pontos de fuga.

Tudo para preencher os espaços vazios de nosso corpo.

Quando vemos já não temos exemplos, mas mitos; e por eles nutrimos a devoção quase infantil de quem não sabe para onde vai, mas confia que ALGUÉM saiba o que fazer com a bola, com o país, com o microfone, com a existência, enfim.

No fim, me volto ao que diz a amiga Safira Lyra, psicóloga e psicanalista, sobre nossa incapacidade de sair das redes – onde, não por acaso, nosso fanatismo aflora – e ficar em silêncio, em paz. Longe das nossas compulsões. Perto do que nos dá mais medo de encarar – nós.

Eu, definitivamente, preciso de uma obsessão.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.