Usar "mimimi" para encerrar discussão é atestado de burrice
O roteiro é o mesmo. Só muda o filme.
O anúncio de "Green Book: o Guia" como vencedor do Oscar de 2019, como não poderia deixar de ser, provocou reações distintas pelas redes sociais nas horas seguintes à cerimônia.
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O longa de Peter Farrelly conta a história da amizade entre um motorista ítalo-americano racista com problemas financeiros que começa a trabalhar para um músico americano negro – e rico.
A mensagem do filme é supostamente edificante: ao atravessarem os EUA em direção ao Sul, eles testemunham a perversidade de um país marcado pela segregação, pela exclusão e, claro, pela violência. Durante a travessia, e apesar das diferenças, tornam-se amigos.
Quem gostou do filme saiu feliz da sessão dizendo que o mundo ainda tem jeito, já que a convivência entre eles cria um campo de empatia supostamente capaz de afogar os preconceitos mais arraigados.
Quem não gostou argumentou que o filme peca ao "passar o pano" para o racismo. Afinal, quem garante que, após os créditos, o motorista interpretado por Viggo Mortensen, que ganha aura de herói por "salvar" quem desprezava antes de conhecer de perto, não seguiria arrotando em casa o mesmo discurso racista, com a diferença de que, agora, estaria livre de qualquer acusação porque, veja bem, "tem até UM amigo negro" – seguido de argumentos como "ele nem precisou de cotas nem de coitadismo para se firmar como talento na música, etc, etc".
De tudo, o que mais incomodou parte do público é que, mesmo tentando enviar uma mensagem contra o preconceito, o filme acaba reforçando papeis extremamente estigmatizantes da relação.
Por exemplo, é o homem branco quem toma a dianteira das decisões, e não só na direção (do filme e do automóvel); o filme mostra que o personagem negro precisa ser dócil, educado e gentil para poder ser aceito em uma casa ítalo-americana, como se somente lá houvesse de fato espaço para o acolhimento. Diante de tudo isso, até Spike Lee, que concorria a melhor filme com "Infiltrado na Klan", virou as costas em protesto pelo prêmio.
Essas nuances nem sempre são fáceis de captar – eu, pelo menos, não captei ao primeiro olhar.
Mas muita gente captou. Captou e manifestou o incômodo, discordando da escolha – e dizendo isso em público, com argumentos e, em muitos casos, com base na própria vivência.
Era para ser parte do jogo. Mas o que ouviram de volta? O de sempre: que as queixas não passavam de "mimimi".
Você pode não ter assistido a "Green Book", mas este filme você já viu: basta alguém levantar o dedo contra uma escolha que deveria ser unânime para ouvir tal interdição.
"Mimimi" é uma das expressões mais sintomáticas de uma era em que muito se diz e pouco se ouve. Eu mesmo já usei muito. Até mesmo em títulos de artigos.
E me arrependo. Atribuir qualquer discordância a "mimimi" equivale a confessar, em voz alta, que estamos pouco dispostos a ouvir, a sermos contrastados, a melhorar nosso argumento. É um crime confesso de incapacidade de argumentação (vulgo burrice).
Mais que isso, mostra que não temos a menor consideração com a inteligência, a história e (muitas vezes) com o sofrimento de quem simplesmente resolveu furar nosso balão de ego com o dedo em riste da discordância.
Nossas posições estão, quase sempre, deitadas confortavelmente nas almofadas do privilégio. E, em uma discussão, é mais fácil atribuir o argumento que nos contraria ao melindre do que rever nossas posições.
Mudar esse hábito exige a revisão de nossos exercícios de chacota como respostas ao desconforto. Para isso, precisamos tirar de vez o "mimimi" do dicionário.
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