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Matheus Pichonelli

De 2013 a 2019: quem poderia imaginar o que o Brasil se tornaria?

Matheus Pichonelli

15/07/2019 04h00

Manifestantes sobem nos prédios do Congresso durante manifestação em 2013 (Foto: Agência Brasil)

"Saímos da nossa idade média nacional diretamente para a era do pré-sal". Os versos da música "Tropicalea Jacta Est", cantados por Tom Zé em 2012, parecem o epitáfio de um país que se apagou.

Uma pesquisa do centro Pew, publicado em 12 de julho daquele ano, dizia que, ao menos em termos econômicos, nós, brasileiros, éramos o povo mais otimista em relação à própria situação: 75% diziam que a condição pessoal era boa, 65% avaliavam bem a do país, 84% esperavam melhora dentro de 12 meses, e 72% viam evolução em suas vidas desde 2007.

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Do fundo do mar, mais precisamente na camada do pré-sal, jorravam perspectivas, e muita gente já se perguntava se até 2020 haveria carros voadores; se a união de forças políticas pela internet implodiria dinastias, hierarquias e entulhos históricos; se o passe livre seria uma realidade nas grandes cidades; se wi fi gratuito em lugares públicos se tornaria um direito fundamental; se o conjunto de informações disponíveis elevaria os níveis de consciência sobre hábitos alimentares, de consumo, locomoção e relacionamento.

Todas essas reivindicações foram, de certa forma, vociferadas nas manifestações iniciadas há pouco mais de seis anos, em junho de 2013, quando o aumento do preço da passagem de ônibus em São Paulo levou um país inteiro a se questionar sobre que tipo de cidade estávamos criando, e para quem, e quem tinha direito às ruas, e às mobilizações, sem ser recebido com cassetetes e bombas de gás.

"Desculpe o transtorno, estamos mudando o país", lembra?

Desde então, todo aquele futuro parece ter tomado o rumo da Caverna do Dragão, de onde corremos em falso atrás de dicas de líderes postiços sem perceber que, invertendo Tom Zé, deixamos a era do pré-sal diretamente para a idade média nacional.

Se não, o que explica, em tão pouco tempo, se tornar normal, tá ok, defender o trabalho infantil em um país de traços escravagistas onde infância e escola são ainda privilégios de quem sonha em alcançar qualquer outro posto na vida que não a carvoaria?

O que, se não um forte deslocamento tectônico de realidade, faz alguém supor que ajudar os pais na loja para pagar as aulas de tênis pode se comparar com o drama de quem vende bala nos cruzamentos?

Sério mesmo que este é o nível do debate em pleno 2019?

De seis anos pra cá, não houve outra palavra mais falada do que "salvação". Primeiro, a salvação passava pelo impeachment. Depois, pela prisão de certos políticos. Depois, pela reforma trabalhista e pelo teto de gastos. Agora, é a reforma da Previdência, e a ideia de que o Brasil só terá jeito se todo mundo trabalhar até depois dos 60 anos, sem cair na informalidade nem se esquecer que depois dos 50 já podemos ser trocados por uma máquina nova, de preferência com corpinho de dez, e morrer em paz atrapalhando o tráfego, como o entregador do Rappi. E amanhã, qual será a salvação? Implantar chip de nióbio na testa para dormir só duas horas por noite?

Com tantas esperanças perdidas, nos acostumamos a ouvir presidente dizer que "coisas absurdas" acontecem nas universidades, como se elas, e não a ausência delas, fossem um grande absurdo; que o Brasil não pode ser associado ao turismo gay, mas que estrangeiro tem carta branca para vir aqui pagar de predador de mulheres; que nossas florestas são "as virgens que todo mundo quer"; que protesto contra cortes na educação é coisa de imbecil; e que tudo bem transformar o governo em uma familiocracia; que tudo o que precisamos é de armas, não de livros; e que os pais têm o direito de arremessarem os filhos de carros sem cadeirinhas em estradas sem controle de velocidade. Esse mesmo presidente homenageia o rapper que espancou a companheira e silencia sobre a morte do ícone da bossa nova.

Também se tornou comum, e até defensável, ver as figuras de juiz e de acusador se fundirem numa mesma entidade, ou ficarem por isso mesmo perguntas elementares sobre como um militar embarca com 39 quilos de cocaína em avião oficial (pegou de quem? para quem levaria?) ou uma vereadora morrer assassinada no meio da rua sem que ninguém saiba as motivações, quem são e por onde andam seus mandantes?

Para quem foi às ruas por 20 centavos, parece não ser nada demais levar agora à mesa de jantar um combo de agrotóxicos proibidos no mundo inteiro, menos aqui.

De tudo, nada parece mais simbólico da nossa ambição medieval do que o alinhamento a países de linhagem autoritária em votações sobre direitos sexuais e das mulheres no Conselho de Direitos Humanos da ONU na última semana.

Lá, os representantes dos novos velhos tempos abstiveram-se de votar em uma resolução pedindo investigações sobre as (milhares?) de execuções da "guerra às drogas" nas Filipinas de Rodrigo Duterte. Para quem tinha medo de se tornar uma Venezuela, uma ditadura igualmente apodrecida pela violência, a negação parece reforçar um desejo.

Em outra resolução, esta sobre o chamado casamento infantil e forçado, o Brasil acaba de votar a favor de uma emenda proposta por Iraque e Egito para excluir do documento qualquer referência a "direito à saúde sexual e reprodutiva".

Embaixadora brasileira da ONU, Maria Nazareth Farani Azevêdo também votou a favor de uma proposta das monarquias absolutistas do Bahrein e da Arábia Saudita para limitar uma recomendação sobre educação sexual, dando aos pais a responsabilidade de serem os únicos orientadores e guardiões legais da questão – mesmo sabendo que boa parte dos abusos nasce e é silenciada no ambiente doméstico.

A cada voto fica mais distante a lembrança de um país que, até outro dia, prometia dar as cartas em questões como meio ambiente, combate à desigualdade e direitos humanos. No novo Brasil, a palavra "futuro" é um termo a ser abolido.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.