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Matheus Pichonelli

O que esperar do mundo quando até abraço começa a ser vendido?

Matheus Pichonelli

19/09/2019 04h00

 

iStock

Dizem que, se conselho fosse bom, ninguém dava; vendia.

Alguém, não se sabe exatamente quando ou onde, levou a sério o ditado e resolveu ganhar dinheiro com isso. Nasceu assim o primeiro "coach".

No mundo onde se tem que pagar pra nascer, pra viver e pra morrer, como já diria o Silvio Brito, poucas coisas gratuitas sobraram nas prateleiras imaginárias da existência. O ar? Só quem pode pagar um fim de semana na serra sabe o quanto vale. A água? Tenta a sorte. A terra? Bom, deixa pra lá.

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Um dos poucos instrumentos básicos do desenvolvimento humano e da saúde mental que ninguém ainda etiquetou é o abraço. Ou era. Dias atrás, lendo o jornal, descobri que na Califórnia alguém decidiu criar um tal "Santuário do carinho".

O espaço fica em uma praia de Los Angeles, e lá é possível desenvolver uma conexão humana mais profunda em forma de abraço de todo tipo. Tem o abraço "coala". Tem o "colo do luxo". Tem o simples e eficaz aperto de mãos. E tem o clássico cafuné.

A repórter Fernanda Ezabella esteve lá e ouviu do diretor de uma ONG que a ideia é oferecer "carinho platônico num mundo privado de contato" (o "privado", aqui, me parece ter um duplo e simbólico sentido). Ele define o empreendimento como um "workshop de comunicação avançada disfarçado de festa do pijama".

Diga-se o que quiser, mas o sujeito tem visão de mercado, que pode ser definido, basicamente, como um jogo de oferta e procura. E, se existe um ativo no mundo com pouca oferta e muita procura, é o afeto.

Não é de hoje. Quando criança, me chamava a atenção a ausência de toques entre adultos do meu ciclo de relacionamento. Principalmente os "conjes". Quanto mais tempo juntos, menor a exposição radioativa da epiderme alheia. (Ok, os garotos, entre eles, até se abraçavam, mas em momentos apropriados. Como no jogo de futebol. Os abraços, é verdade, eram imediatamente corrigidos por muquetas, safanões e pontapés, que no linguajar adolescente são chamados de prova de carinho).

Quando adultos, as possibilidades de encontro (e, consequentemente, de abraços), se reduzem. E não por falta de orientação. Na minha formatura de colegial, por exemplo, um colega brigou com o irmão cinco anos mais novo, a quem adorava tirar do sério, por uma razão que não lembro qual. A mãe do formando interveio. "Pede desculpa pro seu irmãozinho". Ele pediu. "Agora abraça o irmãozinho". Ele abraçou. E assim seguiu para a vida adulta, sem que soubéssemos se, longe daquele olhar vigilante, voltou a ser abraçado desde então.

Volto à reportagem. Segundo o relato, um em cada cinco americanos diz se sentir solitário, o que preocupa as autoridades, que comparam os efeitos deletérios do isolamento social aos do cigarro (15 por dia, mais precisamente).

Sabendo disso, os criadores desses espaços passaram a oferecer "sessões de carinho terapêutico" que podem custar o equivalente a R$ 320 por hora. Quem quiser seguir a carreira de "abraçador" pode, inclusive, fazer um curso de treinamento online.

Isso diz mais sobre a nossa capacidade de buscar o lucro do que sobre a de fazer amigos, e é por isso que esse ramo tem tudo para ser promissor – principalmente se a gente seguir passando mais tempo trocando emoji e bloqueando detratores nas redes do que andando de cabeça erguida e sem medo de encontrar conhecidos na rua. (Conselho gratuito: se a você for recorrente a sensação de ser visto e ignorado, é melhor juntar dinheiro).

De minha parte, posso me lembrar de um belo dia, na semana passada, em que 15 amigos de uma antiga editoria de jornal se reuniram para fazer uma foto durante o lançamento do livro de um amigo. Era o encontro de uma turma da velha guarda que trabalhou por anos em um veículo analógico, de onde guardamos boas lembranças, o contato e o desejo de novos encontros.

Tem razão quem escreveu que as melhores coisas na vida não são coisas e são gratuitas. Uma delas é rever antigos parceiros de jornada e saber que, de alguma forma, fomos marcados por eles e por eles somos lembrados.

Saí daquele reencontro com um estoque de abraços para a posteridade. Guardo comigo cada um deles para me gabar com meus netos num futuro próximo. Enquanto forem gratuitos, seguiremos abraçados.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.