Quantos criminosos vivem no seu condomínio?
A mulher de um ex-PM acusado de matar Marielle Franco, em março 2018, foi presa na semana passada enquanto dormia no quarto com um de seus filhos, em um condomínio de luxo da Barra da Tijuca, no Rio.
Ela é suspeita de ajudar os comparsas do marido a esconder o armamento usado no crime que vitimou a vereadora do PSOL e seu motorista, Anderson Gomes.
O suposto executor vivia no mesmo condomínio do presidente Jair Bolsonaro, no Rio. Ele foi detido no ano passado após ser acusado de traficar armas com um amigo que mantinha em sua casa um arsenal com 117 fuzis.
Em setembro deste ano, a polícia do Rio prendeu o suposto chefe de uma milícia que controlava três comunidades no Recreio dos Bandeirantes. Suspeito de roubo qualificado, extorsão com emprego de arma de fogo, formação de quadrilha, porte de arma e tortura, ele não morava perto do "trabalho", mas em um outro condomínio da Barra.
No mesmo mês, um traficante internacional procurado pela Interpol foi localizado em um condomínio (de luxo, claro) em Angra dos Reis (RJ).
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Enquanto escrevo este texto, supostamente protegido em uma casa vigiada do interior paulista, lembro que o morador de um condomínio na frente do meu ponto de ônibus entrou armado em uma catedral de Campinas, no fim do ano passado, e matou cinco pessoas. Será que algum cidadão de bem desconfiava que o perigo morava ao lado? Ou estávamos ocupados demais em nos proteger dos vizinhos sem-terra que acampavam e eram atropelados perto dali?
(Tempos atrás, uma ação policial desbaratou uma quadrilha que alugou uma das casas de um condomínio onde morei para produzir CDs e DVDs piratas).
Lembro ainda das inúmeras operações policiais cinematográficas contra crimes do colarinho branco em casas construídas entre muros, cercas eletrificadas, sistemas de monitoramento e vigilância e concluo que a ilusão de segurança é o maior ativo da indústria do medo.
Essa ilusão transformou condomínios em bunkers e periferias em praça de guerra.
Nesta guerra, só uns estão protegidos em sua ideia particular de segurança privatizada, em espaços onde o poder público, com exceção de ações pontuais, com mandados, não pode circular. Vale para o policial, vale para as equipes de vigilância sanitária que precisam negociar com os chefes da segurança blindados a entrada no local para combater focos de transmissão de doenças como a dengue.
Pois uma coisa é proteção individual de quem pode pagar por isso. Outra é a proteção de um conjunto de umbigos chamado sociedade.
Em "Mal-estar, sofrimento e sintoma" (Boitempo), um dos livros fundamentais para compreender o nó civilizatório em que cá estamos, o psicanalista, professor titular da USP e colunista do UOL Christian Dunker mostra como a "condominalização" da vida parte de um falso pressuposto: o de que o mal está sempre do lado de lá do nosso muro. Essa lógica transformou o país em um conjunto de ilhas cercadas com grades (e eletrificações) por todos os lados.
Para o autor, a proliferação dos condomínios, onde moramos, trabalhamos ou fazemos compras, nos impede de criar uma cultura que torne a diferença um valor. Pelo contrário: a diferença é vista como perigo, ameaça e risco -inclusive da nossa identidade.
A consequência é a criação de uma mentalidade paranoica dentro e fora dali (a certa altura do livro, ele descreve as pequenas concorrências entre vizinhos que competem para saber quem tem o carro melhor ou a grama mais verde).
A mentalidade paranoica não é conversa de quem dorme com o inimigo e não sabe. Se nesses espaços as autoridades pedem licença para entrar, nos espaços públicos quem deveria oferecer proteção está livre para atirar e revirar hospitais onde a bala se alojou em corpos inocentes– quase todos negros.
Nesse país até a sabedoria pichada em muros sabe que "não escorre sangue nobre porque a bala perdida só encontra o pobre". Dependendo de onde se vive, o alvo é sempre certo.
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