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Matheus Pichonelli

Tá com saudade do AI-5? Vai para a Venezuela

Matheus Pichonelli

04/11/2019 04h00

O deputado Eduardo Bolsonaro – Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

"Vai para a Venezuela" é um argumento recorrente ouvido pelos desavisados quando tentam mostrar que alguma coisa não funciona no Brasil.

O colapso do país vizinho é uma lembrança-ameaça para quem reclama de queimadas na Amazônia, do óleo ao mar, das ordens presidenciais para usar o banheiro a cada dois dias ou da desenvoltura com que Fabrício Queiroz orienta alguém a conseguir um "carguinho" com os amigos. 

"Tá ruim, vai pra Venezuela. Ou Cuba", eles dizem.

Na semana passada, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) resolveu transformar a provocação em ameaça.

Em uma entrevista para o canal da jornalista Leda Nagle no YouTube, ele afirmou que, se a esquerda radicalizar, se continuar criticando o papai por tudo o que acontece sob seu governo, e se acontecerem por aqui protestos como os que ocorreram no Chile, não vai ter jeito: vamos ter de voltar 50 anos no tempo e encontrar a solução para a algaravia popular por meio de um novo AI-5. 

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A menção rendeu um pedido de desculpas e um puxão de orelha do papai, que finge discordar da cria enquanto engole opositores pintados como hienas no Twitter e confessa ter muito em comum com o ditador da Arábia Saudita, déspota acusado de manda esquartejar um jornalista em um consulado da Turquia.

Para quem não sabe, ou deixou o pessoal do Escola sem Partido rasgar as páginas do livro de história, o Ato Institucional número 5, publicado em dezembro de 1968, deu ao presidente da época, o general Costa e Silva, o poder de cassar mandatos, suspender direitos políticos de opositores, a garantia de habeas corpus e de fechar o Congresso por quase um ano. O dispositivo escancarou as portas para o regime militar praticar todo tipo de agressão a opositores. No auge da Guerra Fria, foi a fase mais pesada de uma ditadura criada para salvar o Brasil de uma suposta ditadura.

Pois sabe onde o presidente tem carta branca para governar por decreto, fechar veículos de comunicação, perseguir e prender quem ele acha que conspira contra seu país? Isso mesmo, na Venezuela, onde as forças leais ao ditador são acusadas de deter opositores, como Edgar Zambrano, vice-presidente da Assembleia Nacional que recentemente foi içado dentro do carro até a prisão, e onde cerca de 35 pessoas morreram durante as manifestações iniciadas em abril. Lá, porém, o parlamento não foi fechado.

Verdade seja dita, Eduardo Bolsonaro, que sonhava em ser embaixador decorando verbetes no YouTube, não é nenhum rebelde em sua casa-escola. Bolsonaro pai, por exemplo, é só elogios às experiências antidemocráticas do Chile de Pinochet e do Paraguai de Alberto Stroessner. Seu livro de cabeceira foi escrito por um torturador. E o irmão do meio, Carlos já declarou que a democracia atrapalha o ritmo das mudanças que (ele acha que) o Brasil precisa.

No livro "Simpatia pelo Demônio", de Bernardo Carvalho, o protagonista diz, a certa altura, que existem momentos da história em que a razão deixa de dar conta das contradições e fica totalmente vulnerável ao oportunismo da brutalidade e às investidas das imposturas e da burrice. "Na barbárie, não há dúvidas nem hesitação, segue-se o caminho mais curto."

Na cabeça do deputado, o caminho mais curto é sempre a opção mais viável.

Bastam um cabo e um soldado para fechar o Supremo Tribunal Federal.

Basta resgatar um ato institucional da ditadura para tirar críticos de perto e tudo voltar a brilhar como nos tempos áureos que nunca existiram, a não ser nas cabeças mais delirantes.

Para quem tinha tanto medo de ver o país se tornar uma ditadura do tipo bolivariana, não deve ser fácil evitar o colapso mental ao ver o presidente e seus filhos flertarem dia sim, outro também, com as soluções do passado mais servil e violento para lidar com as questões do presente, entre elas a livre circulação do pensamento e o direito a protestar sempre que algo não funciona –o que, na gestão atual, se tornou uma redundância.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.