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Matheus Pichonelli

Terceira Guerra Mundial? Na tensão, Brasil vira polo exportador de memes

Matheus Pichonelli

09/01/2020 04h00

Faustão sorrindo/Faustão preocupado: um dos muitos memes que captaram a tensão e o deboche dos brasileiros

"Vai ter a Terceira Guerra Mundial?", perguntou meu filho, de seis anos, ao ver os pais falando sobre os ataques com mísseis iranianos a uma base americana em Bagdá, no Iraque. 

Era o tipo de assunto de que não deveríamos falar perto de uma criança, ainda mais quando é hora de deitar. Vendo seu pânico, aceitamos dormir os quatro –os três mais a cachorra– na cama na noite de terça-feira (7), num desses muitos exercícios de transmissão de segurança para crianças entre adultos que mal sabem o que fazer diante da tensão.

Sem conseguir pegar no sono, e como sempre acontece nessas horas, entramos, pai e mãe, no Twitter para conferir as primeiras notícias vindas da capital iraquiana. Logo o silêncio foi quebrado, e o pânico do menino se transformou em confusão. "Por que vocês estão rindo?"

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Como explicar?

No feed, entre as muitas notícias vindas do Oriente Médio, saltava na tela o gif de um sujeito tremendo todo enquanto levava inutilmente uma garrafa de água até a boca. A legenda era autoexplicativa.

"O Irã promete responder a Washington", postava outro, com uma foto do xará e cumpadi do "É o tchan" com o olhar do desespero.

Em imagens sobrepostas, Susana Vieira e Faustão riam e depois ficavam sérios e pensativos diante da catástrofe iminente.

Outro lembrava de ter dito que 2020 seria um ano de muita luz. A luz, na imagem, era o cogumelo de uma bomba nuclear.

Outro desafiava os seguidores a escolher quem os defenderia na Terceira Guerra Mundial; a dele era a cantora Jojo Todynho treinando boxe.

Lá pelas tantas, o bicho-preguiça Sid, de "A Era do Gelo", alternava a famosa frase "vamos viver/vamos morrer" diante do olhar de reprovação de dois mamutes prontos para a guerra.

A coisa chegou a tal ponto que teve gente escrevendo em persa, com a ajuda do Google Tradutor, com apelos para o Irã não atacar o Brasil após Jair Bolsonaro sair em defesa de Donald Trump, seu ídolo.

Nossos escudos antimísseis levavam o rosto da cantora Gretchen e da apresentadora Andressa Urach e viraram notícia em uma rede de TV iraniana. 

"Meu Deus", respondeu Gretchen, após ver seu rosto onipresente no Twitter ganhar também o mundo. Em seguida, ela mesma repostou a mensagem do apresentador local, que pedia para os brasileiros não se preocuparem e prometia nos visitar no Carnaval.

O surrealismo da coisa toda não é capaz de diluir a gravidade da situação após o assassinato de um general da ativa do Irã, que é tratado como terrorista pelos inimigos, como mártir e herói pelos compatriotas, e que levou milhares de pessoas ao seu funeral, marcado pela morte de dezenas de pessoas pisoteadas durante as homenagens e as promessas (muitas) de revide.

Ninguém em sã consciência diria que estamos mais seguros desde o primeiro ataque, mas, em meio à tragédia, com direito a terremoto, acidente aéreo e riscos ao comércio com um parceiro estratégico, o Brasil, que no auge da brincadeira acaba se levando a sério a ponto de se imaginar alvo potencial, virou um polo exportador de memes. Até playlist para ouvir no fim do mundo foi criada no Spotify (destaque para os sucessos "Tiro de Bumbum" e "Olha a Explosão").

O fenômeno não é novo: nos momentos de alta tensão, o deboche é quase um abrigo natural dos brasileiros, e não só depois de tratoradas como o 7 a 1. 

No documentário "Tá Rindo de quê?", Claudio Manuel e Alê Braga mostram como o humor brasileiro floresceu no auge da ditadura, com Chico Anysio, Jô Soares, Os Trapalhões e os cartunistas de "O Pasquim". Todos compunham uma espécie de resistência pelo riso: se o poder não admite erros, a exposição ao ridículo servia como um sistema de contrapesos pelo constrangimento.

"Eles [os militares] só não conseguiram nos tirar uma coisa: nossa capacidade de levar na esportiva", lembraria Millôr Fernandes, anos depois, na introdução de um livro com suas melhores crônicas. O resto era pura derrota.

Esse talento foi herdado pelas gerações seguintes, que encontraram no Twitter o território do alívio cômico –ou um boteco virtual, como definiu o antropólogo Michel Alcoforado, colunista do UOL, quando o entrevistei para falar sobre a tal geração Z, nascida após 1997 e que colonizou a rede social. Lá, as informações, resumidas em trending topics, chegam filtradas pelas lentes do deboche, a grande marca de uma multidão que descobre o que está acontecendo pelo mundo através do meme.

O sucesso da empreitada cria sentimentos confusos. Quem garante que essa tendência à avacalhação não seria sintoma de um país que se nega a crescer ou lidar com as suas tragédias e as tragédias do mundo com a seriedade que os assuntos –tipo, sei lá, a destruição do planeta– merecem?

Pode até ser. Mas enquanto as figuras ditas sérias forem uma caricatura em si, daquelas que atribuem aos peixes uma inteligência própria de fugir do óleo derramado pelos humanos ou que mandam os conterrâneos defecarem dia sim, dia não, para ajudar na preservação do meio ambiente, o meme brasileiro será a única instituição nacional consagrada e digna de nota mundo afora.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.