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Matheus Pichonelli

O dia em que conheci a fúria dos fãs do Gato Galáctico

Matheus Pichonelli

06/02/2020 04h00

Foto de capa do Facebook do Gato Galáctico (Foto: Reprodução)

E foi mais ou menos assim. Numa sexta-feira à noite, pouco antes de fechar os olhos e apagar enquanto ouvia na TV, pela vigésima vez naquela semana, um youtuber contar, aos gritos e com a ajuda de uma animação, como acumulou cicatrizes no queixo, na canela e no joelho em tombos capazes de encher uma piscina de sangue, peguei o celular e escrevi no Twitter: "Vocês reclamam dos irmãos Luccas e Felipe Neto porque seus filhos ainda não descobriram o Gato Galáctico".

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Foi minha última lembrança de um dia marcado por uma briga intestina pelo controle remoto que só não terminou em parricídio porque decidi ceder. Eram nove da noite.

No sábado, ao acordar de sonhos tortuosos, havia me metamorfoseado num velho ranzinza e sob ataque.

"Para de falar merda seu bosta."

"Ah não mermão. Primeiro vai pro quinto dos infernos. Segundo, vai pro quinto dos infernos. Terceiro, vai pro quinto dos infernos de novo, PNC do C#$%%."

"Bom mesmo é tu kkk que piada. Vai aprender a respeitar as outras pessoas e depois volta aqui pra internet. Não existe mais lugar pra gente preconceituosa aqui."

"Você não tem influência nenhuma para falar de qualquer youtuber, sinto muito."

"Deixa os caras em paz. O conteúdo é para crianças, não pro senhor."

"Mano, tu trabalha na UOL e usa iPhone. Mano mds quem é tu."

"Some daqui."

"E vc é o ser poderoso que define o que é bom ou ruim, né?"

Confuso, fui conferir a mensagem para entender tanta fúria. O que eu disse de errado? Pelo visto, gritei "gol do Palmeiras" e alguém entendeu "morte ao Corinthians".

Os miaus, como são chamados os fãs do Gato Galáctico, queriam vingança. No auge da artilharia brotavam avatares de desenhos japoneses com memes até então inéditos (para este senhor), como um Sonic avisando que meu "Tweeter for iPhone" anulava tudo o que eu teria a dizer na sequência.

Percebi, então, que estava não só cancelado pelos fãs do Gato Galáctico, mas finalmente mandado para alguma dimensão da vida adulta em que você já não entende nada, nem de memes, nem de abreviações, nem do que move as paixões da juventude. (Tentei lembrar alguma reação parecida por algo que escrevi sobre abstinência sexual, globalismo, aviões da FAB, rachadinhas, secretários de comunicação encrencados, candidaturas-laranja, tráfico em avião oficial. Nada).

A certa altura, os sommeliers de criação do filho alheio – também conhecidos como outros pais – vinham em voos rasantes perguntar por que diabos eu tinha deixado o garoto decidir o que assistir, e minha vontade era dizer que, meu amigo, minha amiga, uma criança que se apossa do único controle remoto da casa é uma nação que tem petróleo e vai à guerra para evitar a cobiça. Nem a ONU é capaz de pacificar.

Por um instante, tive um déjà vu revendo meu pai confessar com os olhos marejados e os brinquedos de madeira murchos e apodrecidos que jamais entenderia aquela fixação dos filhos pela Vovó Mafalda e o Papai Papudo. Não me lembro bem se ele foi dormir mais cedo na ocasião, mas posso garantir que não acordou com os pés e mãos amarrados na cama sob a ameaça de uma espada de plástico do He-Man apontada para o nariz – as armas eram outras antes do Twitter.

Trinta anos depois, foi como me senti após mexer com uma entidade.

O Gato Galáctico, para quem não conhece, é um rapaz talentoso que mantém um canal com quase 12 milhões de inscritos onde compartilha inúmeros (e, vá lá, divertidos) casos da vida pessoal, como quando trabalhava em uma lanchonete em Londres e se entupia de cookies ou quando mordia rabo de porcos da chácara onde passava a infância com os primos.

Suas animações já foram elogiadas por gente como Mauricio de Sousa e caíram nas graças dos pais mais engajados por serem consideradas family friendly, em contraste com os xingamentos e banheiras lotadas de Nutella nos primórdios dos irmãos Neto (que, vale dizer, também evoluíram).

Depois da postagem, tentei dizer aos fãs que não tinha nada contra o Gato Galáctico. Tinha inclusive filhos de amigos, vários, que também eram fãs do rapaz, inclusive o meu; mas a cada explicação recebia um bombardeio de intimações do tipo "meu, como você tem coragem de reclamar do Gato Galáctico, meu? Por que você faz isso, cara? Ele está muito triste com o que você escreveu!"

A única resposta possível era que, desde Adão e Eva, reclamar é o esporte favorito dos pais. Pais servem para avisar que não se pode comer a maçã. Os filhos estão aí para desobedecer. Essa é a ordem natural das coisas, não importa se a maçã é envenenada, dá barato, vicia ou tem apenas vitamina A.

Eu, por exemplo, já reclamei de drogas mais pesadas, como Galinha Pintadinha, Bob Zoom, Jacarelvis, Bolofofos, Luccas Neto e lives do Bolsonaro.

Reclamo porque está cientificamente comprovado que reclamar libera endorfina, hidrata os colágenos da pele, combate as cáries, evita rugas e  preenche os campos vazios das atenções de quem, desde o nascimento dos filhos, pode chegar em casa com cabelo moicano pintado de verde que ninguém, inclusive a mãe, vai reparar. Por isso reclamamos: reclamamos como quem dá bom dia, porque ficamos rabugentos com a idade e não porque pertencemos a um complô disposto a boicotar ou constranger a produção artística nacional, como sugeriu o menino Galáctico enquanto eu dormia.

Eu preferia uma atração que gritasse menos?

Preferia.

Preferia passar a sexta à noite assistindo aos gols do Palmeiras de 1996?

Preferia.

Mas a vida, diferentemente daquele esquadrão, é um amontoado de derrotas, a começar pela camisa do PSG que meu filho me pede para comprar todo santo dia por motivos de Neymar.

Em resumo, os filhos e seus ídolos – de quem até outro dia nunca ouvimos falar – estão aí para nos destronar. Melhor assim. Caso contrário, o YouTube seria hoje uma grande sala de estar em que a família se reúne para ver Silvio Santos e rir das piadas de sempre que não têm mais a menor graça. Prefiro a fúria dos miaus.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.