Bolsonaro: criança que trabalha aos 10 construirá um robô aos 20?
(iStock)Das dez maiores companhias do planeta em 2020, sete eram gigantes da tecnologia. As demais –dois conglomerados financeiros e uma grande rede de supermercados– já não vivem nem se conectam aos clientes e acionistas sem inteligência artificial.
O impacto dessas empresas no mundo contemporâneo começou a ser desenhado muito antes, quando seus fundadores, programadores e engenheiros ainda estavam na faculdade. Um deles lançou sua plataforma em 2004 entre uma aula e outra em Harvard e, oito anos depois, sua plataforma possuía 1 bilhão de usuários ativos, rendendo ao seu criador uma fortuna avaliada, à época, em US$ 12 bilhões –e multiplicada por cinco na última contagem.
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Não seria exagero afirmar que todos esses gênios do mundo moderno em algum momento chegaram à vida adulta sabendo somar ou ler notícias ao menos até o segundo parágrafo. Isso seria impossível se tivessem passado parte da infância e da adolescência carregando carvão em alguma mina subterrânea de suas cidades.
Na última terça-feira (25), Jair Bolsonaro disse sentir saudade dos tempos em que "menor" podia trabalhar.
O presidente, para quem o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) deveria ser rasgado e jogado na latrina por estimular a "vagabundagem e malandragem infantil", acredita que hoje as crianças podem tudo, inclusive "cheirar um paralelepípedo de crack sem problema algum". Puro populismo, como escreveu a Maria Carolina Trevisan em seu blog.
Alguém deveria perguntar, além das razões para alguém depositar R$ 89 mil na conta da primeira-dama, em que país vive o presidente e do que exatamente sente saudade.
Se quisesse estimular o saudosismo, ele não precisaria esperar algum novo gênio do Vale do Silício inventar uma máquina do tempo para voltar à era de ouro do progresso nacional. Bastaria pegar seu avião presidencial e pousar às margens de uma rodovia entre Papagaios e Pitangui, no interior de Minas, e ouvir a história das crianças e dos adolescentes que, sem aula na pandemia, tiveram de aumentar a carga de trabalho enrolando cigarros de palha.
Neste local, visitado pelo repórter Daniel Camargos, do Repórter Brasil, é possível ganhar R$ 100 enrolando até 2.000 cigarros, com muitas dores nas costas e nenhum equipamento de proteção. Lá os tempos são de ouro –para quem contrata o serviço.
Não são casos isolados, e estou falando de trabalho, trabalho, não de "ajudei meus pais nas férias".
Enquanto dedicam tempo e esforço em um trabalho de repetição manual, jovens de idades semelhantes, longe dali e com acesso amplo aos livros que o ministro Paulo Guedes (Economia) quer encarecer, já plantam as sementes de um mundo que em breve pode ser povoado por humanoides, carros voadores, vacinas para novos coronavírus e máquinas capazes de realizar cirurgias com precisão –tudo isso conectados à internet de quinta, sexta, sétima e infinita geração que um dia vamos precisar entender para usar ou construir.
Adepto do penso, logo desisto, Bolsonaro talvez nunca tenha se perguntado o que faziam na infância seus conterrâneos hoje reconhecidos por desenvolver inteligência artificial para acompanhantes robóticos ou por criar superespécies de vegetais, resistentes ao frio, à seca e a pragas, com ajuda da engenharia genética.
Quando a gente conversa com um desses pesquisadores para as reportagens do Tilt, a editoria de tecnologia do UOL, uma pergunta inevitável é o quanto eles precisaram estudar para criar as bases desse fantástico mundo novo que se desenha e já está acontecendo (não sei vocês, mas para mim é incrível, quase absurdo, pensar que humanos são capazes de usar uma enzima de bactéria para editar o DNA dos organismos, inclusive vírus ou animais, em técnicas revolucionárias como o Crispr. Pois isso já acontece no Brasil).
Qualquer grande líder contemporâneo sabe que tecnologia e inovação são as duas únicas pernas necessárias para seu país dar o salto que este novo mundo exigirá. O sarrafo está próximo da lua, e ela em breve pode até ser habitada.
Bolsonaro prefere citar como exemplo a criança que foi um dia e precisou trabalhar aos dez anos.
O adulto que se tornou não tem hoje o menor apreço pelo saber científico, inclusive o dos médicos que alertavam para o desastre em uma pandemia que ele ajudou a transformar em carnificina.
Como presidente, ele poderia citar as crianças que não têm acesso à escola, se desdobram vendendo bala no farol e viram alvo fácil do tráfico.
Se tivesse um pouco mais de generosidade e curiosidade científica para saber o que trazem os livros, aqueles objetos de comunistas que hoje pretende taxar, o presidente que passou 30 anos na Câmara sem produzir absolutamente nada saberia qual é a probabilidade de uma criança que só sabe enrolar cigarro aos dez anos de idade construir um robô aos 20? Qual a chance de não seguir enrolando cigarro aos 80, se chegar viva até lá.
Caso se questionasse, Bolsonaro saberia também que nenhum jovem é capaz de trabalhar horas desreguladas durante o dia, aprender a ler os códigos de comando de um mundo cada vez mais complexo de tarde e reinventar o futuro de noite.
Sobre a associação entre a proibição do trabalho infantil e o passe livre para crianças fumarem "paralelepípedos de crack", Bolsonaro poderia dizer onde é que elas andam tranquilamente. No país que ele deveria governar, metade das pessoas detidas em apreensões policiais carregava menos de 5,8 gramas da droga. O conceito de liberdade é a morte precoce, a violência dos adultos na rua ou a prisão pela vida toda, mas e daí?
No futuro, ninguém vai perceber as lorotas de candidatos a autocratas nem a maloqueiragem dos cheques em família enquanto eles ensinam crianças a manusear armas em vez de livros.
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