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Matheus Pichonelli

De Romero Britto a Madonna: ódio a algo ou alguém é o fã-clube que nos une

Matheus Pichonelli

20/08/2020 04h00

Romero Britto (Tim P. Whitby/Getty Images for EJAF)

Existem passagens da vida que a gente, de vergonha, esconde, tranca num baú e cerca de armadilhas para que nunca ninguém tenha acesso nem faça uso indevido das memórias. Eu, por exemplo, ficaria envergonhado se alguém soubesse que, entre oito e nove anos, criei com meus primos o fã-clube dos Goonies em Araraquara.

Era uma agremiação restrita. 

Para entrar nela, tinha que amar o filme de Richard Donner sobre todas as coisas e os seus personagens como a nós mesmos. Nos encontros, só podíamos nos chamar pelo codinome. Eu era o Mikey. Meu irmão, o Bocão. O Dênis, meu primo mais novo e mais criativo, era o Dado. E o Tiago, o mais velho, era o Brand.

O tio Claudio, que nos vigiava entre uma cerveja e outra, era o Sloth. 

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Não sei o que tínhamos na cabeça, mas, em algum momento daquela fase da vida, acreditamos realmente que, se procurássemos bem, um dia encontraríamos, como no filme, o tesouro enterrado por algum pirata na zona rural de Araraquara, onde andávamos atentos de bicicleta a mais ou menos 350 quilômetros do navio mais próximo. Apesar das probabilidades, nunca vou esquecer o dia em que meu irmão encontrou a ponta de um objeto prateado enterrado perto de um canavial e nos botou para cavar. Era uma colher.

Vem daquela época, imagino, a expressão "fã de carteirinha". Meu pai era fã-clube Raul Seixas. Minha mãe, Roberto Carlos.

Meu tio, o Sloth da brincadeira, era conhecido no camping que costumava frequentar como o cara que ouvia Zé Ramalho o dia inteiro.

Na escola, tinha fã-clube de todo tipo, da Xuxa ao New Kids on the Block.

Gostar de alguma coisa era o que conferia a nossa identidade. As pessoas se juntavam para ouvir as mesmas músicas, torcer pelo mesmo time e falar sobre a mesma paixão, nem que fosse um modelo antigo de automóvel ou um filme da Sessão da Tarde.

Não tenho provas, mas tenho convicção de que os fã-clubes, desses de carteirinhas, já não fazem sentido no mundo de hoje. Viraram não só um troço do passado, mas um motivo de piada.

Por isso, nunca vou contar pra ninguém que, sim, já tive carteirinha do fã-clube dos Goonies de Araraquara.

Do Orkut ao Facebook, só o ódio une

Pode ser só impressão de quem está mais perto dos 50 do que dos 10 anos de idade. Mas pode ser também o impacto de uma época: se alguém quisesse reunir os primos hoje, seria para manifestar a raiva contra alguma coisa. Sairia de cena o fã-clube dos Goonies e entraria, sei lá, o clube da "Morte à Lagoa Azul".

Minha amiga Adriana Dias, antropóloga da Unicamp, conta como as redes sociais ajudaram a sistematizar o ódio em nossa época. Isso desde os tempos do Orkut, onde as comunidades com mais engajamento eram justamente as que expressavam o ódio a alguma coisa, de meias molhadas ao Djavan.

Os sucessores da plataforma, que Deus a tenha, entenderam o fenômeno e transformaram o Twitter, o Facebook e até o Instagram em verdadeiras correias de transmissão desse ódio. Não tem quem não ande naquele terreno minado sem detonar algum explosivo no próprio colo.

A Madonna, que caiu na bobagem de defender a cloroquina, que o diga. 

Na semana passada, questionei em um artigo por que estávamos nos esbaldando com a cena de uma mulher que foi até a galeria do Romero Britto em Miami e estraçalhou uma obra assinada pelo artista plástico, dada a ela de presente pelo marido. 

Na gravação, de 2017, ela havia mandado o artista pernambucano se colocar em seu lugar e ser mais humilde, já que ele teria tratado mal os funcionários do restaurante dela –uma atitude, claro, detestável.

A mulher se transformou em heroína da única cena disponível para julgamento ali. A outra, que ninguém viu, virou verdade a priori. Afinal, diz a lenda, brasileiro pode ter o dinheiro que for, mas se não faz bobagem na entrada, faz na saída.

E Romero Britto, não é de hoje, é uma figura que todos nós amamos odiar. Por quê? 

Fiz esse questionamento e recebi algumas respostas. Porque se trata de um artista deslumbrado, arrogante, bajulador, com talento menor e símbolo do brega-chique da elite que enriquece e vai desfilar de carro importado nos EUA. Sua derrocada, expressa em seu rosto assustado na cena da galeria, era a vitória contra tudo o que representa. 

Questionei, então, o quanto haveria de preconceito naquele êxtase –um preconceito mais nosso, claro, do que da dona do restaurante, que não é obrigada a falar português nem a saber das nossas discriminações internas.

Mas, estando nós num país onde a discriminação se revela entre quem serve e é servido, quem pode ou não frequentar certos espaços, contei ter estranhado a euforia por ver alguém que, se não tivesse dinheiro, ouviria a vida toda que não tinha direito de acessar um restaurante como o dela. O ódio à sua figura impedia qualquer análise além do "tomou porque mereceu".

E criava uma trava nos olhos ao fato apontado pela pedagoga e ativista Rita Louzeiro em sua página no Facebook: "pessoas negras quando cometem algum ato considerado errado são sempre punidas de formas desproporcionais. Independente do posicionamento político, do teor da arte produzida, do tamanho do erro ou do acerto, artistas negros continuam negros antes de serem artistas".

No dia seguinte à publicação, recebi todo tipo de mensagens nas minhas caixas. Nenhuma era de bom dia.

Noves fora as discordâncias necessárias que qualquer contraponto suscita –além, é claro, do fato de eu poder estar completamente equivocado — a virulência de algumas mensagens chamava a atenção. Não pelo tom, que já se tornou comum na vida em rede, mas pelo campo de onde partiam.

Um professor de comunicação pediu a cassação do meu diploma. "Bosta", "idiota", "babaca" viraram elogio. Um leitor tentou me ensinar que inimigo se trata com sapatada na cara, e não com benefício da dúvida. Outro me acusou de ser eu o único preconceituoso da cena, já que ninguém precisava da minha pena nem da minha compaixão. (Não era um texto sobre compaixão, mas fica difícil não lembrar de um certo presidente eleito dizendo que falar sobre preconceito afaga o "coitadismo").

E vinham emojis de vômitos e xingamentos de avatares de Trotskis, Niemeyers e punhos cerrados me chamando de elitista, passador de pano, bolsonominion, esquerda namastê e adicto da empatia e uma das razões para o Brasil se encontrar onde está. 

Pensei se não estaria louco. Será que foi um delírio a briga com amigos de infância, paulistas como eu, que, no segundo turno das últimas eleições presidenciais, se queixaram dos votos da região Nordeste dizendo "depois esses nordestinos vêm aqui pedir emprego"?

Ou quando vi pessoas em posição de chefia desligar o telefone com atendentes de telemarketing porque do outro lado alguém tinha "voz de baiano"?

Será que ouvi bem, em uma entrevista recente, a deputada Luiza Erundina me dizer que sofreu e sofre até hoje preconceito em São Paulo por ser paraibana?

Ok, só o preconceito do Sul-Sudeste não é razão suficiente para explicar o fenômeno anti-Romero Britto –de quem, repito, não tenho procuração. E é possível, sim, rir da cena e não ter qualquer preconceito contra o alvo.

Uma amiga, que tem se dedicado à psicanálise, diz acreditar que a internet é diferente do mundo real, onde os sujeitos são castrados desde a infância para controlar as pulsões.

Na internet, não. Na internet, o gozo é livre e não existe superego. E interromper o gozo é declarar uma guerra.

E o que provoca mais gozo ali se não saber que podemos odiar juntos o mesmo objeto odiável?

Criamos, assim, os haters de carteirinha. O que me une a você e a outra multidão não é o amor em comum, mas o ódio a algo ou alguém. Isso nos confere identidade. E confere rusgas: se você não odeia o que odeio, você não é digno de entrar em minha morada virtual.

A internet é o campo do justiçamento, e isso é diferente de sentir raiva por uma injustiça.

Mesmo tendo bajulado todos os presidentes eleitos desde, sei lá, Deodoro da Fonseca, Romero Britto, por méritos próprios, ficou associado ao bolsonarismo depois que presenteou o fã de torturador e a primeira-dama dos cheques estranhos com um de seus quadros. 

O fato é que, mesmo sabendo disso, revi a cena e substituí o riso inicial pelo mal-estar. Decidi escrever sobre o caso e deixei claro que não tenho ódio por um sujeito supostamente odiável. Foi o suficiente para ser mandado para o paredão dos inimigos da decência.

O ressentimento como motor

Se você não odeia nem foi odiado em algum momento no Brasil de 2020, você é extraterrestre, sim.

Esse ódio é movimentado pelo ressentimento, que por sua vez é movido pela sensação de perda. 

Isso parece notável entre os grupos conservadores fundamentalistas, que veem até na sombra o risco da perda de prestígio e da dissolução dos valores judaico-cristãos-medievais pelos quais mantinham certo status, ao menos em casa.

E, na esteira da ascensão e queda de um projeto de país minado por operações policiais e delações, há também os que perderam a hegemonia do campo político e se engajaram em buscar culpados para isso. Esses também se ressentiram.

Em suas memórias, o escritor Sándor Márai conta que na Hungria destroçada do pós-guerra, onde a opressão nacional-socialista dera lugar à ocupação soviética, as esperanças de recomeço foram ofuscadas pela emergência de novos ódios: todos haviam perdido alguma coisa –sempre a mais importante. 

Naquele país, escreve o tradutor Paulo Schiller na apresentação de um livro húngaro, a solidariedade dos tempos da guerra dava lugar a uma profunda insatisfação. Odiava-se quem havia perdido menos, odiava-se quem não tinha ódio suficiente, odiavam-se os traidores e os novos oportunistas.

Aparentemente, sem que uma única bomba estourasse em nosso quintal, o Brasil chegou a esta fase: estamos o tempo todo mirando a metralhadora cheia de mágoas nas caras dos que perderam menos em uma década marcada pela crise econômica e política, em que grupos hegemônicos viraram farelo e outros se fortaleceram prometendo destruir muito e construir pouco. Ser "anti" é a única senha de mobilização possível. Azar de quem cruzar essa frente.

Como uma carne cortada aos poucos, eliminamos quem não odeia suficientemente como nós até sobrar um único naco, moralmente superior, vitorioso e solitário. O metal dessa lâmina é o ressentimento, e ele não move só o inimigo ridicularizado pelo meme. 

Nosso ressentimento já passou da hora de ser levado a sério.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.