Que futuro podemos esperar de um país sem museu ou memória?
Matheus Pichonelli
03/09/2018 11h37
Foto: Thiago Ribeiro/Agif/Estadão Conteúdo
Distopia, segundo os dicionários ainda disponíveis para consulta, é uma ideia ou descrição de uma sociedade imaginária em que tudo está organizado de forma opressiva, assustadora ou totalitária.
Nas obras de ficção científica, o medo do futuro está quase sempre relacionado ao medo da perda de controle sobre nossos corpos, pensamento, ações. Essa perda pode se dar, por exemplo, com a ascensão de máquinas que, de tão aperfeiçoadas, se confundem com os próprios humanos. Elas trabalham, lideram, organizam. Mas podem sentir?
Um dia antes do incêndio que atingiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, assisti, durante um voo, ao filme "Blade Runner 2049", continuação do cultuado longa de ficção científica sobre um mundo futurístico em que ninguém mais sabe quem é gente e quem é máquina – nem as próprias máquinas, programadas para caçarem umas às outras conforme suas versões são atualizadas e aposentadas.
No filme de 2017, o personagem de Ryan Gosling passa o tempo todo à caça de si. Em dúvida sobre se é um robô ou uma pessoa, descobre que existe algo fundamental entre uma coisa e outra: a memória. A dos primeiros é criada, inserida, comprada, atualizada, como já fazemos com os celulares quando eles nos avisam que estão sem espaço.
Os humanos, por sua vez, não constroem memória: são a memória. E a memória não são as informações que podemos acessar a qualquer hora – até tudo buggar – pelo Google, mas um conjunto de vivências que se aglutinam e constituem nosso próprio DNA.
Sim: somos resultados de uma combinação genética aleatória, mas é o contato desse conjunto com o mundo a ser desbravado, reinventado e interpretado que torna nossa história única. Isso faz de nós seres pensantes e contraditórios diante das possibilidades a serem analisadas (medo, dor, alegria, esperança, segurança, liberdade) antes de tomar uma decisão, e não apenas um código binário programado para não errar.
Somos tão complexos que nossas memórias estão em permanente transformação em sua relação com a consciência e o nosso inconsciente. Daí a necessidade de registro, documentação, escrita. Elaboração, enfim.
As histórias de ficção científicas ensinam que as máquinas não podem se humanizar, mas a recíproca nem sempre é verdadeira. Se algumas funções humanas forem desativadas, nós podemos passar o resto da vida "vegetando" como máquinas que não pensam no que dizem, apenas repetem fórmulas, bordões.
Isso não é só exercício de imaginação de futuro, mas um perigo presente: o incêndio no Museu Nacional e outras tragédias que acertaram no peito as artes no Brasil são a vitória da ideia de que não precisamos da nossa memória e da nossa história para compreender e construir nossa identidade, nossa riqueza, nossa cultura – o que nos faz humanos, enfim.
Não é de hoje. Uma pesquisa recente produzida pela consultoria JLeiva Cultura & Esporte em parceria com o Datafolha mostra que três em cada dez moradores de 12 capitais nunca pisaram em um museu e só 30% foram a um nos últimos 12 meses. Isso sem contar o índice dos que nunca foram ao teatro (37%), concertos (66%), cinema (9%) ou que nunca leram um livro (15%).
Esses hábitos não são exercícios de erudição, mas a possibilidades de circular, pensar, imaginar, se conhecer e elaborar saídas e respostas para nossas crises pessoais, mas também nacionais.
"Mas é um momento de crise e temos outras prioridades", dizem os que, colapsados pela mais pobre das rotinas, já não se veem como indivíduos dotados de história e subjetividade, mas estruturas ósseas rodeadas de carne e necessidades meramente funcionais, como dormir, acordar, comer, digerir. Uma rotina entre robótica e bovina que certamente dispensaria memória.
O problema é que esse sucateamento da própria memória não é opção. Se o mundo hoje está girando em falso, tomado por gente agressiva, ansiosa e apavorada, é porque deixamos de criar conexões entre nossas histórias e o próprio mundo. Ignoramos a constituição do nosso passados e, como não sabemos de onde viemos, também não identificamos nem sabemos lidar com as angústias do presente. O resultado é a total ausência de perspectivas.
No futuro, seremos todos indivíduos tarados por segurança, trancados com todos os cadeados dentro de casa, consumindo apenas o que as redes de streaming oferecem – e o que elas oferecem será permanentemente substituído por fórmulas entre audiência e lucro. Nada se preserva, nada se fixa.
Nosso contato com a cidade será mediado apenas pelos entregadores de pizza. O resto pode ser comprado no shopping center.
Não sei se vocês perceberam, mas esse futuro distópico é a cena mais melancólica do nosso presente.
Sobre o autor
Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.
Sobre o blog
Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.