Com tantos desmentidos, o Brasil de 2019 precisa de um VAR
Matheus Pichonelli
11/01/2019 04h00
Imagem: Arte/UOL
Quem acompanha futebol já se acostumou com o fenômeno. Desde a Copa de 2018, um gol já não é um gol. É um indício, uma possibilidade de gol. Quando a bola supostamente cruza a linha debaixo da trave, ninguém mais sai como louco comemorando ou gritando provocações na janela.
Em vez disso, espera o vídeo de arbitragem, o famigerado VAR.
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Não quero discutir se a introdução da tecnologia, uma tentativa de eliminar do campo dois elementos básicos da vida na Terra (o erro e a surpresa), melhorou ou não o espetáculo. Acho até que melhorou.
Mas não deixa de ser curioso como nos acostumamos a esse compasso de espera, uma espécie de suspensão no tempo, em busca da confirmação de uma tristeza ou de uma alegria em explosão.
Quem já correu como doido pela casa para celebrar um gol posteriormente anulado sabe o que é se sentir enganado. É como se algo fosse tirado de nós. Uma experiência que já vivemos e precisamos descartar.
Fora de campo, não existe uma tecnologia que volte o lance até a origem para saber se estamos diante de uma fraude ou não. As disponíveis levam tempo e no jargão jurídico são chamadas de inquérito. Podem levar meses até se resolver.
Nos mundo atual, ninguém pode esperar tanto para formar um juízo. O problema é que, a cada evidência, novos juízos se formam em cascata, cada um com uma consequência. É como um veredicto a prestações.
Exemplo disso foi a celeuma causada após o Faustão dizer no ar que "o imbecil que está lá e não deveria estar pode até ser honesto, mas é um idiota que está ferrando com todo mundo".
A fala produziu todo tipo de interpretações e se você foi um dos que vislumbrou ali o anúncio de uma guerra midiática da maior emissora do país contra um governo recém-eleito e estourou pipoca à espera dos bombardeios, sinto dizer: fizemos papel de bobo.
Algumas horas depois, o apresentador se prontificou a dizer que não era assim, que veja lá, veja bem, falava de forma geral, dentro de outro contexto, em uma fala gravada antes da posse etc, etc.
Da mesma forma, muita gente se assustou, com razão, ao descobrir que o novo governo pretendia distribuir livros com propaganda e sem citação de fontes bibliográficas aos estudantes.
O anúncio provocou uma corrida para estocar obras de referência, até que (surpresa!) alguém veio a público desmentir o anúncio, como há poucos dias já haviam feito com o anúncio desanunciado sobre aumento de impostos, as novas regras da aposentadoria, a base dos EUA no nosso quintal, a demissão de servidores não-alinhados, a guerra com países vizinhos e a revogação da lei da gravidade.
Esta última foi especialmente importante: muita gente já dormia de bruços com receio de acordar no telhado.
Em 1938, os EUA entraram em pânico, com fuga em massa e reações desesperadas, ao ouvir pelo rádio que extraterrestres invadiam o planeta. Era, na verdade, a transmissão de uma radionovela de Orson Welles chamada "Guerra dos Mundos".
Oitenta anos depois, nossas ferramentas de comunicação são capazes de produzir uma "Guerra dos Mundos" por minuto. Elas espalham confusões, que, após serem desmentidas, não são apagadas retroativamente; nossos medos permanecem ativos.
A série de ditos e desditos oficiais mostra que já não estamos na era da Pós-Verdade, em que os fatos importam menos que nossas opiniões e impressões sobre eles. Estamos na era da Pós-Mentira, e ela não é apenas um conjunto de mal-entendidos. É um sintoma e uma estratégia.
Em uma época em que ninguém tem mais tempo de ler ou observar algo até o final, a concisão se tornou uma ferramenta vital de comunicação. Mas, em vez de precisão e assertividade, que exigem conhecimento e responsabilidade, ela deu lugar a ambiguidades, a frases entrecortadas, picotadas e abertas a mil e uma interpretações.
Na dúvida, é melhor aguardar a validação do lance, como no futebol. Ele pode levar dias. Ou segundos. Caso contrário, vamos estar sempre correndo das coisas sem que de fato elas tenham saído do lugar.
É como se dançássemos uma imensa quadrinha de festa junina. Lembra? "Olha a cobra!", e corremos. "É mentira!".
O zigue-zague é alimentado pela nossa ansiedade, e nossa ignorância diante dos fatos é fonte de permanente sofrimento e tensão. Perdemos energia berrando num quarto escuro sem saber se o objeto que se move é uma corda ou uma cobra.
Em outros tempos, bastaria acender a luz. Essa que querem apagar à força.
Sobre o autor
Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.
Sobre o blog
Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.