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Com filho na embaixada, Bolsonaro prova que o mundo é dos herdeiros

Matheus Pichonelli

13/07/2019 04h00

Eduardo Bolsonaro, reeleito deputado federal com o maior número de votos pelo estado de São Paulo (Fabio Rodrigues Pozzebom/ Agencia Brasil)

Quem vem de cidade pequena, como eu, sabe que o sobrenome é uma espécie de entidade divina pelo interior do país. Essa entidade é capaz de abrir portas, furar filas, driblar multas, embelezar os atributos mais opacos e transformar em projeto as ideias mais estapafúrdias.

A fama precede o rosto nessas cidades, mas seus representantes são facilmente identificáveis entre os simples mortais, seja pela forma como aceleram os carrões pela avenida principal, seja pela forma como dão ordem a todos os que veem na frente, inclusive aos que não são seus empregados.

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A credencial dessas figuras é um green card para acessar qualquer espaço. Basta ser filho, ou ao menos parente distante, de alguém importante.

Ser filho de autoridade (das letras, do meio jurídico, da imprensa, da medicina ou da política), no interior, é circular como uma aura de intocável – e nem as babás nem os professores sabem o que fazem quando eles, respaldados pela autoridade sobrenomenaturais (acabei de criar um neologismo), se tornam sujeitos sem limites, de quem as pessoas só se aproximam quando precisam elevar o prestígio e o crediário social.

É o que permite, por exemplo, sentar no fundão da sala e, sem risco de ser repreendido, ofender o colega com piadas sobre seu peso.

Ou quando começa a andar em más companhias e a bancar os gostos, digamos, pouco convencionais dos laranjas-podres da sala que oferecem proteção em troca de um favorzinho aqui, um empréstimo acolá. Se alguém contesta, a carteirada vale por si: "vou contar tudo pro meu pai".

Quando os filhos resolvem acompanhar as atividades do pai famosão, um panda chamado meritocracia morre engasgado nos zoológicos do Brasil real, onde as pessoas aparentemente acreditam que ajudar na loja da família para pagar as aulas de tênis equivale ao trabalho de uma criança de nove anos em uma carvoaria.

Nas empresas familiares, os funcionários com mais repertório, estudo e tempo de casa precisam fingir que acreditam no patrão quando ele condecora e fala das habilidades e talentos naturais dos filhos-herdeiros, que aos poucos passam a comandar a companhia, de forma formal ou informal, abrindo terreno para a máxima sobre "pais ricos, filhos nobres, netos pobres".

Em termos políticos, a maior pobreza é a de espírito. Se o Brasil fosse uma empresa, uma embaixada como a dos EUA seria uma espécie de filial em um país estratégico para os negócios da família. A diferença é que um embaixador é um servidor público, a serviço dos comandados, e não o contrário.

No Brasil de Bolsonaro, essa risca de giz já parecia borrada quando o filho do meio fez biquinho ao descobriu que não seria ministro nem eminência parda das comunicações oficiais, o que o levou a dizer os maiores impropérios contra conselheiros formais da empresa, digo, do governo.

O mesmo não se pode dizer do filho mais jovem, Eduardo Bolsonaro, deputado eleito por São Paulo sob a sombra do pai, para quem recorre toda vez que se vê em apuros com travessuras como ameaçar explodir o Supremo Tribunal Federal.

Eduardo é o exemplo clássico de príncipe-herdeiro de clãs políticos, mas não é o único em uma legislatura composta por representantes das famílias Arraes, Capiberibe, Amin, Cassol, Nogueira e Maia – capitão da reforma da Previdência, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, é filho de um ex-prefeito do Rio.

Brasília, em outras palavras, é uma grande cidade do interior onde os filhos dos doutores se encontram quando saem da puberdade.

O problema é que, depois dos 30, os sucessores já não se contentam com brinquedos, mesmo que elas tenham bala e calibre de verdade. Na impossibilidade de ganhar um castelo, decidem brincar de diplomata, uma carreira tão prestigiada quanto o concurso do Instituto Rio Branco, que renova os quadros diplomáticos do país desde 1946 e que chega a ter 5 mil candidatos para apenas 30 vagas.

Ninguém alcança o topo dessa carreira lendo ou replicando os tuítes de Olavo de Carvalho, a não ser que o pai seja influente a ponto de convencer seus eleitores ainda fieis que falar inglês e espanhol, ter viajado pelo mundo e fritado hambúrguer nos EUA sejam credenciais adequadas para a diplomacia – de cabeça, consigo lembrar de ao menos dez colegas com habilidades idênticas, mas eles são apenas rapazes latino americanos sem dinheiro no banco, sem parentes importantes, vindos do interior e com textos para entregar no fim do dia.

Entre os adultos, corre à boca pequena o temor de que, uma vez escolhido, o filho do homem se torne um "bedel" dos diplomatas brasileiros em Nova York, especialmente em assuntos como direitos humanos, política ambiental, questões de gênero, desigualdade e temas indígenas.

Nos EUA, a notícia já repercute. O próprio presidente Donald Trump não teria se tornado nem dono de hotel se não fosse filho de um influente milionário, como mostra a série "Um Sonho Americano", da Netflix. Boatos até disseram  que ele enviaria outro herdeiro, no caso, seu filho Eric, para ocupar um posto similar no Brasil. Ninguém confirmou oficialmente.

É tipo um intercâmbio de férias, só que com dinheiro público.

Como as famílias tradicionais do interior, ninguém quer um filho sem talento e entediado dentro de casa: dá trabalho e custa caro.

Na nova política, mediada por slogans como Brasil em primeiro lugar e America First, o mundo já não é dos espertos. É dos herdeiros.

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Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.