Ódio, ignorância e livros “queimados“: você já viu esse filme antes
Matheus Pichonelli
10/02/2020 04h00
Cena do filme Jojo Rabbit, inspirado em livro sobre jovem nazista
Naquele verão, recebemos nossa primeira missão importante. Todos os livros que haviam promovido decadência ou perversidade tinham sido recolhidos por toda a cidade.
Nós, os mais jovens, devíamos carregar os livros até os meninos adolescentes, que tinham o privilégio de jogá-los ao fogo.
Logo o ar da fogueira ficava quente e difícil de respirar. A fumaça era negra e cheirava a tinta queimada.
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Um nome me chamou a atenção: Sigmund Freud. Eu o vira antes nas estantes da nossa própria biblioteca. Kurt Freitag, Paul Nettl, Henrich Heine e Robert Musil se seguiam, bem como um livro didático meu, provavelmente obsoleto.
Velhos livros foram substituídos por novos, assim como nossos antigos professores foram trocados. Fiquei triste por não ter podido me despedir do meu professor favorito. A razão para a substituição era que muitos dos temas que ele costumava nos ensinar eram esquecidos na idade adulta e, portanto, inúteis. Tudo aquilo custava ao Estado dinheiro que podia ser usado em outras coisas para o maior benefício do povo. Nós éramos de uma nova geração, uma geração privilegiada; logo seríamos os primeiros a tirar vantagens de um programa escolar modernizado. Passamos a aprender muito menos dos livros do que antes. Passávamos horas praticando disciplinas que nos tornariam adultos fortes e saudáveis em vez de ratos de biblioteca pálidos e fracos.
O ideal, disse-nos um líder, era que conseguíssemos bater com a cabeça de um bebê na parede sem sentir nada. Sentimentos eram os inimigos mais perigosos da humanidade. Eram eles, acima de tudo, que deviam ser aniquilados se quiséssemos nos tornar um povo melhor.
Infelizmente, era necessário nos livrar de todos os fardos da nossa comunidade, inclusive deficientes mentais e físicos.
O mundo estava mudando. Precisávamos ir à guerra para lutar pela moral, a disciplina, a beleza e o sentimento de perfeição humana.
Se você leu os parágrafos acima e sentiu alguma familiaridade com as notícias sobre retirada de livros das escolas, broncas com o amontoados de palavras, sentimentos que deveriam ser aniquilados em nome de um bem acima de tudo e todos, gastos com doenças incuráveis, professores afrontados por ensinar matéria "inútil" e guerras (ao menos as simbólicas) que colocavam em xeque a moral, a disciplina e a beleza anunciadas por antigos secretários da Cultura, sinto, mas sinto muito mesmo.
Os parágrafos acima não saíram do noticiário recente, e sim do livro "O Céu que Nos Oprime", um drama de quatro costados da neozelandesa Christine Leunens sobre um garoto da Juventude Hitlerista que tem o caráter moldado pelo Reich enquanto perde o braço, o movimento da face, os laços familiares e um pedaço da sua humanidade em nome de um ideal.
Recém-lançado pela editora Bertrand Brasil, o livro inspirou o filme "Jojo Rabbit", tragicomédia de Taika Waititi que no domingo (9) levou o Oscar de melhor roteiro adaptado e gerou críticas por retratar o protagonista como uma criança idealista e desastrada que ganha a companhia de um amigo imaginário e imbecil chamado Adolf Hitler.
Tanto no livro como no filme, o mal-estar é provocado por quem observa a tragédia da experiência nazista pelo olhar de uma criança. Essa tragédia começou com uma lista de livros a serem queimados e substituídos por teses racistas, lidas sem criticidade, a respeito de uma falsa superioridade racial e moral de um povo supostamente eleito. No Brasil, nem Machado de Assis, autor da nossa melhor radiografia, escaparia da queima.
Essa humanidade espoliada da criança que tem idade para ir à guerra, mas não para a literatura, só é reconstituída quando o personagem, Johannes, descobre e se apaixona pelo inimigo, uma jovem judia que ele aprendeu na escola a odiar e que sua família ariana decide acolher em segredo no sótão da casa.
Num espelho invertido, é ela quem se aproxima dele sem medo quando todos demonstravam nojo e desprezo por seu aspecto físico ao ser atingido por uma bomba enquanto servia voluntariamente numa guerra que não era para ele. (No filme, há ao menos uma cena antológica, quando ele pede para a jovem desenhar onde viviam os inimigos e ela lhe entrega o desenho de sua cabeça.)
Já no livro, o que parece uma história de amor se torna a história de um cárcere privado quando, ao fim da guerra, ele decide manter a amada no cativeiro dizendo que os alemães haviam vencido o conflito.
É a ausência de conhecimento e informações do que vem de fora que permite à vítima permanecer no breu, como no mito da caverna. Como ela, estamos todos à mercê de quem pode deletar os livros e recontar a História como convém.
"O grande perigo de mentir não é que as mentiras sejam inverdades e, portanto, irreais, e sim elas se tornarem reais na cabeça de outras pessoas", diz Jojo, o menino fofo e deslumbrado do filme, logo no início do livro. "As mentiras escapam do controle do mentiroso como sementes arremessadas ao vento, germinando uma vida própria nos lugares menos esperados."
Não consigo pensar em nada mais alegórico para entender a beirada do precipício onde o planeta resolver dançar em pleno século 21.
Sobre o autor
Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.
Sobre o blog
Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.