Filme francês discute gordofobia pelo olhar de uma aspirante a astronauta
Matheus Pichonelli
02/03/2020 04h00
Cena do filme "Cem Quilos de Estrelas"
"Não tenho um sentimento de inferioridade", costumava dizer Katherine Johnson, uma das matemáticas por trás do sucesso da missão Apollo 11, que morreu no último dia 24, aos 101 anos. "Sou tão boa quanto qualquer um."
Parte de sua história está contada no filme "Estrelas Além do Tempo", que concorreu ao Oscar de melhor longa-metragem, melhor atriz coadjuvante e melhor roteiro adaptado em 2017.
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Longe do estrelato, Johnson afirmava para quem quisesse ouvir que estava apenas fazendo o seu trabalho quando era questionada sobre os méritos da missão que colocou o homem na Lua. Isso embora em seu ambiente de trabalho mulheres negras, como ela, tivessem de usar escritórios, refeitórios e até banheiros separados do restante da equipe, inclusive mulheres brancas. (No filme, ela e as colegas percorrem distâncias homéricas para usarem o banheiro enquanto faziam cálculos precisos para que os heróis americanos saíssem e voltassem vivos para a órbita.)
A ironia, segundo a autora do livro homônimo que inspirou o filme, Margot Shetterly, é que esse trabalho foi feito em uma época em que era mais fácil uma mulher como ela morrer antes dos 35 anos do que terminar o ensino médio.
O voo espacial Apollo 11 decolou em 1969, mas quem quiser visualizar as barreiras que os habitantes da Terra ainda enfrentam para trabalhar em postos de prestígio, como uma agência espacial, e mudar os rumos da história pode conferir, a partir do dia 5, o filme "100 Quilos de Estrelas", da diretora francesa Marie-Sophie Chambon.
O drama adolescente acompanha a trajetória de Lois, uma jovem de 16 anos que pesa 100 quilos e sonha em ser astronauta. Desde a escola, porém, ela ouve que pode até atuar como coadjuvante das equipes espaciais, fazendo contas e determinando rotas a distância, mas nunca como parte da tripulação. A razão está no seu peso.
As objeções que ouve mesmo nas aulas de ciência, onde se destaca, fazem com que ela passe a odiar o próprio corpo e decida parar de comer.
O transtorno alimentar a leva até uma clínica, onde conhece outras garotas internadas com problemas de aceitação do próprio corpo, entre elas uma cadeirante e uma jovem com anorexia.
Lois com as amigas em cena do filme
É quando elas se juntam para promover uma fuga e furar as camadas atmosféricas em direção a um centro espacial de Toulouse, um mundo à parte orbitado apenas por garotos. "Você vai mostrar pra esses babacas que você pode ser gorda e cosmonauta", diz uma das amigas no caminho.
Furar essa bolha, como quem fura a gravidade, exige movimento, e é esse movimento que a câmera acompanha o tempo todo, em automóveis interceptados ou corridas em direção aos pátios de lançamento. Para elas, a pior força gravitacional é o confinamento dos quartos.
A diretora do longa, Marie-Sophie Chambon
O filme mostra que essa caminhada é permeada por desafios. Mostra também como o convívio entre as personagens de diferentes sensibilidades nem sempre é pautado pela solidariedade. Em diversas ocasiões a protagonista é desautorizada e chamada de gorda toda vez que as opiniões entre elas colidem.
A personagem é inspirada na própria experiência da diretora, que na infância via a mãe submeter as filhas a fazerem dieta desde cedo. Foi quando Marie-Sophie percebeu que o corpo acima do peso simboliza "tudo o que não é permitido que uma mulher seja em nossa sociedade".
Essa tensão é observada em mais de uma cena de confronto entre a jovem Lois e sua mãe, a primeira a jogar sobre o corpo da filha as âncoras do voo que não consegue empreender.
No filme, a discussão em torno da gordofobia é guiada pela ótica da alegoria: o peso, afinal, é relativo em um universo repleto de planetas e estrelas com tamanhos e formas diferentes.
O sonho da protagonista não é se livrar desse corpo, mas flutuar no espaço até encontrar um lugar, leve e distante das hostilidade e julgamentos, onde a carga de preconceito sobre ele se torne indiferente. Será pedir demais?
Sobre o autor
Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.
Sobre o blog
Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.