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Uma carta para Miguel

Matheus Pichonelli

06/06/2020 04h00

Foto: iStock

Meu filho,

Amanhã é seu aniversário. Sete anos. 

Aos poucos, fica cada vez mais distante o susto que tomamos quando sua mãe foi ao médico para uma visita de rotina e anunciaram que você tinha entrado em estágio de sofrimento. 

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Era o jargão médico com o alerta de que você não ganhava mais peso e precisava saltar para este mundo em poucas horas. Não este, ainda, mas um mundo intermediário, de acrílico, tomado por sensores, respiradores e uma equipe médica atenta que vigiou o seu sono por quase 40 dias. 

O mundo explodia fora dali. Era junho de 2013.

Sete anos depois, o mundo explode de novo. Acho até que nunca deixou de explodir. Mas tem horas que as coisas ficam mais evidentes.

Por causa da omissão de uns e o deboche de outros, estamos trancados em casa há quase três meses. Não tem hora para a nossa quarentena acabar.

Você sente, eu sei, que desta vez não vai ter festa com os amigos. Sente não poder abraçar seus tios e avós. E o bolo (spoiler) nem ficou lá essas coisas.

Mas estamos num universo expansivo perto da caixa de acrílico onde você cresceu — ao menos até chegar aos dois quilos.

Você lutou muito até dobrar de tamanho e ficar livre daquela sonda e daqueles fios. Vou te lembrar sempre disso, embora eu às vezes me esqueça enquanto reclamo da vida e das nossas brigas pelo controle remoto, pelos choques de personalidade que já colecionamos e pelo silêncio que reivindico gritando enquanto escrevo.

Os últimos dias não estão sendo os mais fáceis, mas acredite: somos privilegiados.

Sua mãe e eu conseguimos adaptar a rotina do trabalho, não falta nada na geladeira e não tem ninguém capturando nosso pescoço com um arpão mandando voltar à superfície, onde mais de 35 mil pessoas já morreram contaminadas na pandemia do coronavírus só no Brasil. Só nas contas oficiais.

Não sei que lembranças você vai ter desse seu aniversário sem graça, mas não é sobre isso que eu queria falar. Eu te escrevo para pedir, no futuro, quando tiver idade para ler a crônica do seu sétimo aniversário, que você se lembre de outro Miguel. Você não o conheceu. Vocês nunca vão se conhecer.

O que eu queria dizer neste dia, se você pudesse entender, é que é preciso lembrar sempre desse Miguel de sobrenome Silva. Como tantos. Nele está um Brasil que grita. E grita desde que fizemos de pessoas negras, raptadas de suas terras, o motor de um país que ainda tem as bases fincadas em um sistema colonial de exploração. Está vendo: tudo isso é complexo demais para entender aos sete anos.

Esse Miguel de um país de Miguéis, o nome mais popular do ano em que você nasceu, foi trabalhar com a mãe dele na última terça-feira (2) e não voltou. Diferentemente de nós, eles não puderam ficar em casa protegidos da pandemia.

Essa mãe não tinha com quem deixar o filho enquanto trabalhava, enquanto as escolas, como a sua, seguem fechadas, enquanto as ruas do mundo todo ardem em protestos pela morte de um homem negro, que foi asfixiado pelo joelho de um policial nos EUA.

O Miguel não voltou pra casa porque ele incomodou a dona da casa enquanto chorava. Chorava de saudade da mãe que precisou passear com o cachorro da patroa.

O mundo é um moinho, dizia um compositor também negro de apelido Cartola. E esse moinho fez com que, nas casas de quem tem bala para se autoproclamar pessoas de bem, animais se humanizem e humanos sejam tratados como animais. Estes não têm direito ao choro.

E porque choram são despachados, como cães, nos elevadores de serviço que não sabem para onde vai. São jogados aos destinos que podem ceifar antes o que tentarão tirar na vida adulta. Neste moinho, um jovem negro tem quase 3 vezes mais chances de ser assassinado do que um jovem branco.

A mãe do Miguel não estudou porque precisava ficar com o filho. E não tinha onde deixá-lo quando ia ao trabalho na casa grande.

Quando sua mãe se formou dentista, os oradores da festa lembraram que neste moinho só uma fração de brasileiros consegue chegar onde ela chegou. Nada disseram sobre um país onde ter dentes era também ter chaves de acesso para um mundo de poucos, pouquíssimos.

Naquele dia combinamos que nossos diplomas – o meu, de jornalista; o dela, de dentista – não serviria para nada se o mundo que entregasse a você fosse ainda um país de privilégios para quem tem dentes e para quem tem acesso à informação.

Mas falhamos. Falhamos porque nunca conseguimos lutar o suficiente para que pessoas como a mãe do Miguel pudessem ficar em quarentena, como nós, e pudessem vigiar o filho, em vez de cuidar dos cães.

Talvez a minha turma e a da sua mãe tenham se iludido pensando que justiça se consegue pedindo licença. Que as conquistas de um país inteiro, se havia, estavam gravadas em pedra, como um direito dado, e não permanentemente em disputa para que se tornasse real.

Quando tiver idade suficiente para entender tudo isso, lembre-se com carinho do dia em que nos reunimos, só nós três, em volta de um pequeno bolo de aniversário. O que parecia pouco era muito. Era quase tudo.

Mas lembre-se principalmente do amigo que tinha o seu mesmo nome.

Lembre-se que é preciso manter a vigilância para que meninos como ele não sigam massacrados por um país que manteve as bases da escravidão e determina quais vidas importam e quais não importam. As vidas negras importam. Enquanto te protegia, um mundo inteiro começava a gritar esse hino pelas ruas e pelas redes.

Ouça o que eles têm a dizer.

Faça como pede a Djamila Ribeiro, no livro que está no nosso quarto. Não fuja deste encontro, como temos fugido há mais de 130 anos. 

Enxergue a negritude, reconheça nossos privilégios, perceba o racismo internalizado, apoie políticas educacionais afirmativas, transforme seu ambiente de trabalho, leia autores negros, questione a cultura que você consome, conheça seus desejos e afetos, combata a violência racial – o que incluiu desautorizar piadas e comentários jocosos de pessoas que amamos e perpetuam o racismo. E se incomodar permanentemente toda vez que perceber quem serve e quem é servido nos espaços onde frequenta.

Este mundo que você vai manejar um dia vai ser melhor que este de onde descrevo agora. Tem que ser.

Tente ser feliz, mas não não se esqueça. Não existe alegria sem paz. E não há paz sem justiça. É o que as ruas estão pedindo neste momento.

Um mundo injusto a nosso favor é um mundo onde não vale a pena viver. Vamos fazer valer a pena.

Apenas não se esqueça.

Um beijo do seu pai.

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Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.