Terraplanismo sanitário: a doença que exige boa notícia no auge da pandemia
Matheus Pichonelli
11/06/2020 04h00
Foto: Marcos Corrêa/PR
Jornalismo e boa notícia podem até aparecer na mesma frase, mas ela será tão estranha quanto um sushi boiando num caldo de feijão.
Notícias existem. Se são boas ou más, se agradam ou desagradam, fica a critério de quem consegue ligar os pontos e interpretar os fatos.
Em tempos de terraplanismo político, o jornalismo profissional esbarra em todo tipo de obstáculo. Um deles é o ufanismo, aquele sentimento que faria Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, celebrar até hoje o gol solitário do Oscar contra a Alemanha na Copa de 2014. Um exemplo da resiliência pátria mesmo quando perdemos o jogo por 7 a 1.
Notícia boa todo mundo quer. Falta combinar com a vida real.
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Tempos atrás, um importante portal decidiu colocar em prática uma sacada de marketing sugerida por seu principal executivo: para animar os leitores, durante 24 horas só seriam publicados registros positivos. Era o Dia da Boa Notícia.
A iniciativa durou algumas horas.
No meio da tarde, os responsáveis pelo projeto acharam que pegaria mal esperar o dia seguinte para dar a notícia sobre os atentados às Torres Gêmeas de Nova York. Sim, o Dia da Boa Notícia nasceu (e morreu) em 11 de setembro de 2001. Um clássico sushi de soda cáustica boiando na feijoada.
Quase 20 anos depois, Jair Bolsonaro, chateado com o negativismo da imprensa e de alguns eleitores impacientes, parece querer retomar a iniciativa. Segue a letra deixada por Regina Duarte em sua passagem-relâmpago pela Secretaria da Cultura: ninguém merece carregar um cemitério nas costas. Nem de mortos do passado, nem do presente. O legal é ficar leve e sorrir, mesmo quando estamos besuntados no óleo da frigideira presidencial. Gol do Oscar. Carta da dona Lúcia.
O Brasil lidera a desinformação sobre número de casos e mortes por Covid-19 no mundo. O resultado é o fiasco em seu combate.
Nas redes Bolsonaro jura que os açoites de parte da mídia querem apenas deslegitimar e atrapalhar a governança. Só não conta que fez de tudo para que seu governo deixasse de noticiar que seu país soma mais de 1.000 óbitos diários em uma pandemia que ele já chamou de "fantasia", "resfriadinho" e "histeria".
Para isso queria que o Ministério da Saúde divulgasse apenas as mortes ocorridas em 24h –as confirmadas naquele dia entrariam num limbo indigno de habitar no reino do alto astral sanitário construído com cloroquina e enxofre, como sugeriu uma fã ao presidente. A receita composta por alho e boa fé rendeu uma promessa de audiência e uma mobilização dos sites de checagem para desmentir os atributos milagrosos do bulbo.
Quando confrontado, o presidente manda quem incomoda se retirar e chama a conversa de abobrinha.
Faz quase três meses que, com a ajuda dos filhos, Bolsonaro gravou um vídeo dizendo que a eficácia da cloroquina estava demonstrada e que em breve ficaríamos livres desse vírus. Pouco depois, ele apostou que a doença não faria arranhão na região Norte porque lá a população usava o medicamento contra a malária e estaria "vacinada". Em seguida, o sistema de saúde de Manaus, a maior cidade da região, entrou em colapso. Lá, jura seu ministro interino, um general sem experiência na área da saúde, o inverno está mais ligado ao do hemisfério norte (oi, Canadá) do que o restante do país.
No livro "Nada de Novo no Front", o soldado de Erich M. Remarque volta para casa, na Alemanha, durante um intervalo nos combates da Primeira Guerra, e estranha o otimismo dos conterrâneos nos bares e cafés de sua cidade. Aquele otimismo tinha nome: alienação.
Numa passagem antológica, os amigos alimentados pelas notícias oficiais decidem ensinar ao soldado como estão as coisas nos campos de combate, onde todos seriam bem alimentados e o moral "excelente" em breve quebraria as linhas inimigas. Alguns davam até dicas de como esmagar os franceses. Sem a mesma empolgação, o soldado ouvia dos amigos que ele não conseguia julgar, na linha de frente, o conjunto da obra. Naquele momento, ele percebeu que a guerra estava perdida.
No front sanitário nacional, as capitais que apresentam baixos índices de casos confirmados e mortes por Covid-19 têm quase 12 vezes mais mortes por Síndrome Respiratória Aguda Grave com causa não especificada, como mostrou o repórter Marcelo Soares.
Nas falas oficiais, há quem insista que a chance de sobrevivência de quem se contamina com coronavírus são maiores do que as de morrer (uma verdade neste caso, assim como é verdade que as chances de sobreviver à roleta russa são de 6 para 1).
"Eu pergunto a todos: como é que você acha que uma senhora de idade, uma pessoa humilde ou que sofre de outra enfermidade se sente com essa maciça divulgação desses fatos negativos. Não tá ajudando", reclamou, em abril, o ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, quando "só" 2.900 pessoas haviam morrido. Poderia estar falando de algum programa policialesco, mas era só bronca com o "negativismo" de uma doença que já ceifou 40 mil vidas, fora a subnotificação.
Desculpa, general, mas não dá para contar essa história em memes ou power point. Não tem magia, nem gestor de sobrenome Wizard, que resolva.
Fiscalizar o poder e divulgar, de forma honesta e transparente, o número de mortos em uma pandemia não é alimentar urubus, mas orientar decisões pessoais baseadas nos riscos que envolvem a retomada da vida pré-pandemia. É o que decidiu fazer o consórcio de veículos de imprensa que passou a coletar e divulgar em horário propício os números atualizados da pandemia. E é o que agora, após o boicote explícito ao Jornal Nacional, o governo federal promete fazer após ser enquadrado pelo Supremo Tribunal Federal.
Bolsonaro vai seguir apostando na confusão e na ignorância para combater o "pânico", como se uma coisa não fosse resultado da outra. Exige que seja retratado como estadista enquanto divulga estudo inconclusivo da OMS e ouve quieto um guru dizer que derruba seu governo quando quiser.
Em seu mundo dos sonhos, imprensa e opositores se limitariam apenas a bater palmas para suas escolhas certeiras, de filhos embaixadores a amigos no comando da Polícia Federal.
Neste mundo ideal, rachadinha seria chamada de prova de amizade.
Miliciano, de herói.
Gabinetes do ódio, de grupos patrióticos.
E mortes por Covid, de caminho natural da vida.
A verdade liberta, desde que ela convenha.
Valesse a mesma lógica, os patriotas da Alemanha que voltaram ao front não saberiam até agora o fim da história. Na revanche da Segunda Guerra, estariam ainda esperando ordens de Adolf Hitler para contra-atacar. E torcendo para dar certo o grande plano de fazer o Reich grande de novo.
Sobre o autor
Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.
Sobre o blog
Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.