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Corrida para o shopping é sintoma de uma sociedade confinada há anos

Matheus Pichonelli

22/06/2020 04h00

Keiny Andrade/UOL

Todos os caminhos levam até os shoppings da maior cidade da região para onde me mudei em 2014.

Precisa mandar uma carta? Pergunta no shopping.

Quer cortar o cabelo? Shopping também.

E almoçar? Shopping.

Um chope? Adivinha.

E ver os filmes indicados ao Oscar? Idem.

Livraria? Já sabe.

Na falta de um, a região de 20 municípios e 3 milhões de habitantes comporta três conjuntos comerciais ligados pela mesma rodovia. No caminho, muros e grades dos condomínios de alto e nem tão alto padrão sufocam bolsões de pobreza pelos quais passamos na tampa do limite da velocidade.

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No caminho, não há "pare", faróis, gente pedindo dinheiro nem para vigiar o carro. Chega-se mais rápido à cancela do estacionamento do que na venda da esquina.

Em tempos normais, o conceito de diversão é sair de um padrão de confinamento para outro, este mediado por sistemas de monitoramento, vigilância e espaços matematicamente ordenados entre gôndolas e ofertas imperdíveis. É a Disney tanto para quem está disposto a pagar R$ 5.000 numa calça de grife quanto para quem quer tomar um sorvete de casquinha longe dos bairros de praças mal iluminadas num sábado à noite (a ojeriza dos frequentadores habituais aos rolezinhos mostra que nem sempre esse encontro é bem aceito, mas esta é outra história. Ou não). 

Até pouco tempo atrás, esse padrão de consumo, entre a distração e a compulsão, representava apenas a banalidade da vida comum –prática, segura e organizada, segundo a propaganda oficial, ou frívola e sem grandes emoções, na visão de qualquer navegador do século 16.

Hoje, esse padrão de vida é risco sanitário. 

Ao menos até alguém encontrar a vacina ou um remédio de fato eficaz para conter o morticínio do coronavírus, é mais fácil atravessar um rio de crocodilos sem arranhões do que voltar para casa imune após uma incursão na seção de jeans.

Ainda assim, corremos o risco na primeira oportunidade.

Quando cidades como São Paulo flexibilizaram o comércio, uma mulher que saía de um shopping da avenida Paulista foi fotografada a poucos passos de uma cruz, desenhada pelo traçado branco em contraste com o piso escuro do outro lado da calçada. Como se caminhasse para a morte. 

O julgamento estava implícito e pipocou pelas redes.

Em uma coluna publicada no fim de março, quando os efeitos da pandemia ainda eram uma incógnita, o psicanalista Contardo Calligaris defendeu que era urgente desvendar os significados atribuídos ao coronavírus como punição a nosso modo de vida. Citando a ensaísta Susan Sontag, autora de "Aids e suas Metáforas", ele lembrava que, na história da nossa cultura, as doenças são quase sempre usadas como metáforas do mal do qual a sociedade deveria ser "curada".

A Aids, além de ser uma infecção fatal, para muitos significava uma espécie de vingança celeste contra uma vida de excessos. Era "o castigo que acabaria de vez com a liberação sexual e suas invenções 'diabólicas' desde os anos 1960, como os anticoncepcionais, o divórcio etc".

Da mesma forma, lembrou o colunista da Folha, a peste bubônica se tornou a metáfora do que seria condenável nos avanços da modernidade ocidental –"urbana, viajante e promíscua".

Para Calligaris, o coronavírus seria logo interpretado como uma punição a uma "extraordinária impulsão em direção a um mundo cada vez mais aberto, sem fronteiras: um mundo de viagens, contatos e encontros". Uma metáfora, em outras palavras, da "resistência à ampliação do mundo".

Três meses depois, arrisco dizer que estamos "lendo" a expansão da doença de outra forma. Não como uma experiência de alteridade que precisou ser interrompida, mas como punição a uma sociedade movida pelo consumo. Uma sociedade que agora vai às compras como quem vai ao abate.

Ao sair do shopping, no meio da pandemia, aquela mulher em direção à cruz representava não um risco para si, mas o adoecimento de uma sociedade egoísta, irresponsável, vaidosa e compulsiva –quatro adjetivos que servem como motores de um modelo de produção, esse sim expansivo, insustentável e baseado numa logística insana e hiperdependente de grandes e distantes mercados, como a China.

A mulher da foto, a quem corremos para apontar o desvio de caráter, como fazemos ao ver alguém furar os esforços pelo isolamento, mesmo quando sai a trabalho, era produto e não a causa da falência dos esforços coletivos para conter o chamado inimigo comum, o vírus.

Esses esforços nascem boicotados muito antes, quando confundimos direito ao consumo com direito à cidadania, um bombardeio que começa na propaganda e desemboca na boca do governante que lamenta a morte de CNPJs e diz "e daí" para os mortos com CPF.

Inserida nessa lógica, essa sociedade já estava confinada há muito tempo.

Penso nisso quando me lembro de um amigo que passou o ano trancado no escritório e, nas férias, atravessou o mundo confinado em aeroportos, avião, restaurante, hall de hotel e praças de alimentação de shopping onde se sentiu em casa mesmo numa língua estrangeira. Da cidade visitada nada tinha a dizer, a não ser que a vista do quarto era ótima.

Se há metáfora na doença do coronavírus, ela não me parece estar na capacidade expansiva do vírus que importamos. Está nos riscos da contaminação dos espaços fechados, diminutos, como bolhas, onde há anos já passeamos com nossas fantasias antissépticas e ilusões de segurança.

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Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.