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Matheus Pichonelli

Quem diria que para saber o futuro era preciso olhar para trás?

Matheus Pichonelli

29/05/2018 04h00

Cena do filme Mad Max

Cena do filme Mad Max

"O passado é uma roupa que não nos cabe mais".

Que Belchior e Elis Regina me perdoem, mas nesses tempos de crise nem as melhores sentenças da nossa música popular ficaram de pé.

De um tempo para cá é preciso escolher bem o modelito do passado antes de sair (a pé, claro) pelas ruas. No nosso armário abundam tecidos amarrotados de 2013, 1984, 1968, 1964, 1954 e até do século 19; se fuçar um pouco é possível ir além, ou atrás, como pude perceber ao chegar em casa, no sábado, com um estoque de carvão para o caso de acabar o gás, a luz, o resto do óleo e da civilização. (Enquanto reviso este trecho, um cavalo acaba de relinchar na rua de baixo. Se não carregar algum cavaleiros do Apocalipse, bom sinal não deve ser).

Quando eu era criança, láááááááá nos anos 1980, gostava de imaginar como seria a vida no futuro. E o futuro era alguma esquina localizada nos anos 2000 com carros e skates voadores, como no filme "De Volta para o Futuro".

Ninguém poderia imaginar que para saber como seria o futuro era preciso olhar para trás.

Com o passar dos anos, tivemos de ajustar as expectativas, e o futuro passou a ser associado a um conjunto de valores como sustentabilidade, diversidade, compartilhamento, horizontalidade. Ser moderno, ou contemporâneo, era olhar com a distância devida uma estrutura apodrecida de comandos, hierarquias, exclusões e repressões.

Nesse admirável mundo novo, poderíamos ir ao trabalho de bicicleta, protegidos por faixas de segurança entre parques urbanos lineares, e de lá elaborar os planos para o futuro e deixar no passado o tempo em que pessoas morriam por por ser quem elas eram ou amar como quisessem.

Essa realidade imaginada transita agora entre os esqueletos de carros voadores da nossa imaginação vencida.

Pois a distância entre expectativa e realidade é hoje o nosso maior déficit, em que pese o discurso contrário dos governantes que por uma vírgula não assumiram que o país voltou 20 anos em 2 – um slogan otimista, pois há 20 anos ainda havia carro na rua e combustível no tanque.

A realidade hoje é saber que o presidente da maior potência do planeta faz chacota em público dos alertas de aquecimento global; nas escolas brasileiras, movimentos organizados de gente de bem quer colocar tarja preta na boca de professores e proibir qualquer menção a palavra gênero, igualdade ou política de proteção a jovens massacrados e obrigados a deixar a sala de aula por falta de acolhimento; nossos sistemas de mensagens instantâneas se transformaram num esgoto por onde escorrem meias-verdades, arrogâncias, discursos de ódio e soluções fáceis que não arranham temas complexos; a mulher mais próxima do comando em Brasília é a primeira-dama já chamada de "bela, recatada e do lar"; a escravidão é ainda uma realidade para boa parte da população e uma das poucas novidades reais no cenário político tomado por cabelos acaju e botox com selo de gestor era uma vereadora negra nascida na periferia que foi metralhada em via pública possivelmente por um colega vereador.

Numa conversão à Idade Média, por aqui não faltam livros e autores amaldiçoados nem fogueiras contra "bruxas" que defendem, vejam só, um mundo sem medos, patrulha e preconceitos.

O flerte com o passado é tanto que o presidente que prometia construir a "Ponte para o Futuro" chama a moeda corrente de "cruzeiro" e não foi avisado que a União Soviética acabou; o favorito nas pesquisas para sucedê-lo acha injusto mulher ganhar o mesmo que homem, tem como solução final dar uma arma para cada um e o filho do "mito" é acusado de ameaçar "acabar com a vida" de uma ex-assessora.

Mais ou menos como cavaleiros em uma convenção da Nasa, temos até herdeiros da antiga Monarquia fazendo palestras sobre como tirar o país do atraso. Seria cômico, não fosse trágico.

Na semana passada, a falta de combustíveis fósseis e poluentes que gostaríamos superados a essa altura da história transformou nossos bairros em cenários do estilo Mad Max: por um litro a nove reais, já tinha gente vendendo os filhos. Filas imensas, cidades paradas, supermercados desabastecidos, alimentos descartados, canibalismo de animais na reta do abate, gritos por ordem em meio à desordem.

Na escassez, houve quem furasse os tanques de carros estacionados na rua para roubar gasolina. E, claro, não faltou quem se estropiasse para tentar furar a fileira.

Quem tinha juízo (e autorização dos chefes), passou os últimos dias em casa procurando no Google como fazer fogo com pedra e graveto. O sujeito do futuro será caçador do próprio almoço.

Com tanto flerte ao passado, os planos para o futuro foram adiados ou se perderam entre escombros. Faltam-nos lanternas para reiniciar as buscas e descobrir, afinal, em que ano estamos.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.