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Matheus Pichonelli

Decepção de José Padilha com Sérgio Moro é alerta: herói, só na ficção

Matheus Pichonelli

18/04/2019 04h00

O "herói" Capitão Nascimento, de Tropa de Elite – Reprodução

A carta-desabafo de José Padilha, diretor de "Tropa de Elite", sobre sua decepção com o ex-juiz e atual ministro da Justiça Sérgio Moro é didática em muitos sentidos.

O principal deles: não se pode ter ídolos na vida. Não para sempre. Menos ainda depois de adultos.

O conselho vale também para quem alimenta gurus, heróis, mitos e guerreiros do povo brasileiro em geral. Delegar a alguém as esperanças de salvação não é só ridículo. É também perigoso (se tiver alguma dúvida, assista "Wild, Wild, Country", série vizinha de "O Mecanismo" na Netflix, na qual Moro já era desenhado por Padilha como herói).

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Padilha, que já chamou o ex-magistrado de "Samurai Ronin", aparentemente está decepcionado com o pacote anticrime do agora ministro. Segundo ele, o projeto que promete complicar a vida de bandidos tende a fortalecer também as milícias, como essas que matam, controlam o tráfico, o serviço de TV a cabo e a construção de prédios que desmoronam sem a devida fiscalização no Rio.

Um samurai ronin é conhecido por não seguir mestre algum. No caso de Padilha, era uma referência à independência política observada pelo cineasta na conduta do juiz Sérgio Moro ao longo da Lava Jato. Pois o mesmo Moro que mandou prender Lula, então candidato a presidente em 2018, aceitou trabalhar para seu rival, Jair Bolsonaro, quando este venceu a eleição.

Não vou entrar no mérito dos argumentos, mas que a situação é irônica é.

Lendo a carta, a vontade é oferecer um abraço e dizer "te entendo, amigo". Na minha prateleira, o que não faltam são ídolos de pés de barro que perderam o posto após declarações bizarras, demonstrações gratuitas de preconceito ou passagens imperdoáveis da biografia. Michael Jackson puxa a fila.

Quando a relação entra no campo político, a coisa engrossa ainda mais. Como se não bastasse ter de responder pelas bobagens que cometemos ao longo da vida, o risco é sermos cobrados também pelos equívocos cometidos pelo ídolo que estampa nossa camiseta e nosso avatar no Facebook.

Você já deve ter visto esse filme.

Bertolt Brecht dizia que um país que não tem herói é um país miserável, mas que é também miserável um país que PRECISA de heróis.

O Brasil de um tempo pra cá (só o Brasil? Só de um tempo pra cá?) virou uma terra arrasada de referências.

Tempos atrás, o símbolo de um país que supostamente reagiria à letargia em relação à criminalidade era justamente um personagem fictício de uma obra de Padilha: o violento e perturbado Capitão Nascimento. Bem, o fato de o próprio Wagner Moura ser a antítese, na vida privada, de seu personagem-símbolo já é suficiente pra provocar um tilt na cabeça dos desavisados.

A verdade é que, nesta terra arrasada, a única coisa que brota é o ressentimento, e nessas horas o que não faltam são candidatos a ídolo, mitos e gurus, guerreiros do povo brasileiro e samurais salvadores com uma espada de Grayskull* nas costas gritando "eu tenho a força".

Pobre de quem acredita.

Como definiu, em um debate recente, o psicanalista Jurandir Freire Costa, em um mundo marcado pelo desemprego e pela precarização do trabalho, sofremos hoje uma perda gradativa de identidade e enraizamento – o emprego/missão, afinal, define o que somos, onde vivemos e o que fazemos.

Junto com a crise em outras referências (políticas, religiosas, intelectuais, etc) que já não dão respostas para um mundo complexo e conectado, essa perda nos leva, segundo ele, a odiar tudo o que nos frustra, a idealizar um passado supostamente perfeito e a criar uma espécie de fetiche em relação a líderes que nos prometem resolver todos os problemas no grito.

O problema é que, entre ilusões e desilusões, vivemos sempre em compasso de espera, à esquerda e à direita, trocando de ídolos como quem troca de camisa, na esperança paralisante de quem terceiriza os anseios aos que imaginamos não ter os nossos defeitos, nossas fraquezas e nossas contradições.

Não é questão de torcer para dar certo ou errado este ou aquilo governo, mas de saber que nada pode dar certo enquanto a servidão for um ato voluntário.

Deixar de acreditar cegamente em nossos heróis é o primeiro passo para realmente fazer a diferença. O resto é esperneio.

*Vou terminar o texto como fazia um velho desenho da TV: no episódio de hoje aprendemos que juiz não é samurai, é um servidor público, e faria um bom serviço se assim se comportasse, de modo impessoal, sem vaidade ou inclinações políticas. Até a próxima, pessoal!

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.