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Matheus Pichonelli

Em vez de criticar, políticos querem que você reze: prece agora é lei em SP

Matheus Pichonelli

05/08/2019 04h00

 

Nem rezando… (iStock)

O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), sancionou, na semana passada, um projeto de lei que institui o "Dia da Oração pelas Autoridades da Nação". A partir de agora, a data pode ser comemorada em todas as terceiras segundas-feiras do mês.

A ideia, segundo o autor da proposta, deputado estadual Reinaldo Alguz (PV), é "que o povo passe orar e não criticar as autoridades constituídas no Estado de São Paulo e por toda a Nação Brasileira". Afinal, neste país que notabilizou as palavras "fé" e "resiliência" na pele e nas camisas de seus cidadãos, é ainda comum, veja só, "ouvirmos críticas e condenações verbais a respeito de nossos governantes e políticos em geral".

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A proposta chega a lembrar um meme, que até hoje não sabemos se criado por um apoiador ou um opositor disfarçado com ironia fina em um protesto, segundo o qual a nossa energia negativa estava levando o mito Jair Bolsonaro a errar.

Pela lógica, se as vaias e ofensas a Dilma Rousseff no jogo de estreia da Copa de 2014, na Arena Corinthians, em Itaquera, fossem substituídas por orações, a presidenta não só estaria no cargo até outro dia como os 7 a 1 nas semifinais seriam certamente contidos pelas boas vibes. Pelo jeito, nossa energia ruim foi o elemento surpresa, e fatal, do ataque alemão. Agora tudo (não) faz sentido.

O pior é que tenho dito, à boca pequena (na verdade até postei no Facebook), que o Brasil de 2019 me obriga a rezar.

O terço no meu bolso direito e o escapulário no peito já deveriam acusar minha dedicação a causas divinas, mas nunca quis misturar uma coisa com outra – minha mãe, catequista, diz que estou jurado toda vez que peço ajuda divina para reverter alguma adversidade esportiva que envolva o Palmeiras e a seleção brasileira.

Doria e o deputado que me desculpem, mas, como filho obediente, pretendo continuar não misturando fé com causas políticas nem esportivas.

Explico. Quando criança, ouvia dos adultos que um dos pecados da carne era discutir política, religião e futebol. Na vida adulta, comecei a desconfiar que não discutir significava não contestar, e isso é o sonho de qualquer político, padre/pastor ou treinador: que nos sentássemos nas arquibancadas com a obediência bovina de quem assiste sem se rebelar à espera paralisante de que a bola entre ou que decisões políticas, como a liberação de armas, não promovam uma carnificina entre irmãos. Não é preciso entrar em campo. Basta torcer.

Desde 1500 os brasileiros têm dado demonstrações claras de desobediência sobre as leis que regem o que deve ou não ser discutido –como provam as discussões acaloradas no bar ou nas mesas-redondas de TV sobre se foi ou não pênalti, ou a briga fratricida no Facebook entre quem votou diferente nas últimas eleições.

Religião, por sua vez, é um tema muito menos discutido do que deveria. Se fosse, estaríamos questionando, a essa altura, em que momento santos e profetas disseram "armai-vos uns aos outros" e outras determinações que só os homens de certas inclinações políticas parecem encontrar nos textos sagrados.

Isso não impede ninguém de ter fé. A minha, apesar de todas as provações e desconfianças sobre se alguém está, de fato, guiando a coisa toda (sim, sou vacilante quando o assunto é fé), ainda se direciona a algo que não entendo, não vejo, não tenho controle e tento reconhecer como uma força superior. Pode não estar no céu, mas nas águas, no solo, nas plantas e em tudo o que me parece sagrado e me dê alguma noção de amparo e sentido.

Essa fé, seja ela vacilante ou não, pressupõe uma noção de espera e provação por dias melhores sobre algo que não tenho o menor controle.

É o contrário do que deveria mediar nossa relação com a política: seus representantes não são deuses nem estão no olimpo. São um de nós, de carne e osso como nós, passíveis a erros como nós, e por isso mesmo passíveis de cobrança – como nós.

"Rezar" para que façam o melhor é matar a essência da própria atividade política, que requer vigilância, transparência, ação e participação.

Diferentemente do que ensinavam os antigos, não é pecado discutir os temas ditos indiscutíveis, mas sim misturar uma coisa à outra e transformar sujeitos políticos em entidades divinas que, façam o que fizerem, merecem apenas nossa reza. "Fé", em outras palavras, é um conceito radicalmente incompatível com os valores políticos porque requer espera, e não confronto.

O Brasil, realmente, me obriga a rezar. Para nos livrar de espertalhões que usam o nome de Deus para fazer o que bem querem ou fugir de suas responsabilidades na terra. Se o inferno realmente existir, tenho a impressão de que muitos devotos já estão condenados.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.