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Matheus Pichonelli

Promessa para 2019: diminuir o uso de celular e voltar a ser gente

Matheus Pichonelli

29/12/2018 04h00

 

Foto: Getty Images

Tomei um susto quando comecei a receber as notificações nos finais da semana. "Seu tempo de uso do celular é de seis horas por dia".

Seis. Horas. Por. Dia.

Um quarto de um dia inteiro – contando as horas dormidas e as outras diante de outros equipamentos, como a TV e o laptop.

Diante do alerta, um anjo torto, desses que vive na sombra, me disse "relaxa, deve ser porque, de um tempo pra cá, você ampliou a carga de serviços consumidos no celular, que há dez anos servia só para fazer e receber ligações e enviar mensagens (centenas) por SMS".

De fato, hoje o smartphone, meu maior investimento financeiro do ano, serve para ver filme, séries, conferir e-mails, ouvir música, ler as versões digitais dos jornais e até escrever estas crônicas, a depender do tempo e do lugar.

Mas uma análise detalhada do relatório mostra que boa parte do meu tempo de uso é reservado para redes sociais, tretas de WhatsApp e entretenimento.

Vai ver por isso vivo dizendo que me falta tempo (e, consequentemente, humor) para tudo. Elementar, meu caro Watson.

Andamos por aí, como zumbis vidrados, com a sensação de ter uma janela para o mundo guardada no bolso quando na verdade estamos consumindo e interagindo com expressões emocionais, como medo, angústia, aflições, raiva e deboche, transformadas em posts, textões, memes.

Ao longo dos anos, nós, pessoas, complexas, cheias de nuances, humores e possibilidades, começamos a condicionar nossas experiências a uma lógica binária que já começa no pequeno espaço reservado à nossa descrição, o famoso "sobre nós".

O que os filósofos levaram séculos para, em vão, tentar descrever ou explicar, nós preenchemos em segundos. Ou somos direita, ou somos esquerda. Ou curtimos ou não curtimos. Ou adicionamos ou bloqueamos. Ou choramos ou damos risada.

É como se não houvesse nada nem no meio, nem adiante, muito menos além.

A verdade é que nós nos simplificamos. Fomos simplificados.

E trocamos uma tela de dimensão infinita por uma telinha de algumas polegadas onde passamos a concentrar tudo, mas tudo mesmo – para muita gente, até a vida sexual. (A profusão de nudes de corpos em miniaturas talvez explique os inúmeros relatos sobre queda na atividade sexual na vida real. As pessoas ficaram tão viciadas nos melhores ângulos, imóveis, sem cheiro nem conflito, que já não sabem o que fazer diante de um corpo de verdade).

Até as paisagens externas, que esperamos o ano todo para desfrutar (praia, céu, mar, montanhas), só fazem sentido se puderem ser enquadradas, "espremidas" na tela, e compartilhadas.

Se fosse fazer uma avaliação do ano, o tempo médio diante do celular seria uma espécie de peso na balança que preciso (precisamos) cortar.

Um dos sinais dessa urgência é a decisão de experts em tecnologia que começam a abandonar o barco. Muitos deles decidiram simplesmente cortar o contato de seus filhos com smartphones após identificarem uma relação entre o uso exagerado e o atraso no desenvolvimento, prejuízo no sono, depressão e ansiedade.

"Pensamos que poderíamos controlar a tecnologia, mas isso está além do nosso poder. Vai diretamente aos centros de prazer dos cérebros em desenvolvimento. Vai muito além da nossa compreensão como pais comuns", resumiu, em reportagem recente, Chris Anderson, CEO de uma empresa de robótica e drones.

Parece um traficante falando sobre o contato dos filhos com as drogas, não é? Pois, para ele, na escala entre doces e crack, as telas estão mais perto do crack.

Mais do que tempo, as redes sociais nos tiraram também a capacidade de dialogar e ver o mundo. Trocamos o tete-a-tete, os relatos, os argumentos, por carinhas de nojo e vômito, hashtags, frases de efeito e palavras de ordem.

Elas nos provocam e nos levam, no fim, a uma guerra virtual entre nossos avatares e os avatares inimigos. Não tem a menor chance de dar certo.

Em 2019, voltar a conversar com pessoas reais é uma forma de voltar a ser gente. Bom ano e boa tentativa a todos os conectados.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.