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Matheus Pichonelli

O que dizer quando os filhos se dão conta da finitude?

Matheus Pichonelli

26/12/2019 04h00

Cena de

Cena de"Boyhood – Da infância à Juventude" / Reprodução

Minha mãe avisou, pelo WhatsApp, que iria viajar. Estava a caminho da cidade de minha avó, que naquele dia, em setembro, acordou com um dos braços paralisados. A lucidez e a ausência de dor não minimizavam a preocupação de quem se locomove com a ajuda de um andador. Sim, envelhecer é complexo. Ver alguém envelhecer, também.

A tensão em casa, a cerca de 300km da cidade onde ela vive com meu avô, dois filhos e dois netos, era acompanhada com os olhos e os ouvidos de meu filho, de seis anos.

-A bisa vai morrer?

Para uma criança não existe nada muito preocupante entre um ponto e outro do nascer e o deixar de existir; se estamos vivos estamos bem, não importa como.

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As notícias seguintes, pelo telefone e WhatsApp, ajudaram a amenizar o clima em casa. A vó estava bem, medicada e em observação em um hospital. As duas filhas chegariam dali a pouco, para colocar em prática a tarefa de organizar os afetos e tarefas corriqueiras, como localizar o pijama, que meu vô aparentemente não conseguia empreender.

O silêncio, na nossa casa, só foi quebrado quando meu filho percebeu que um dente permanente estava para nascer e deu um grito. Ele despontava sob a fileira de dente de leite, que ainda não cedera.

A briga do velho com o novo produzia nele uma série de questionamentos silenciosos que irromperam já no carro, a caminho da escola.

-Quando eu morrer e for para o céu, vai ser este dente que vai estar comigo?

Pelo retrovisor, troco olhares com a mãe. O que responder?

– Na verdade…er… não levamos muita coisa quando vamos para o céu. Nem sabemos direito se é para lá que vamos…

– O que vai pra lá, então?

No filme "21 gramas", o mexicano Alejandro González Iñárritu entrelaça diversas histórias como referência à perda de peso dos corpos humanos no momento em que deixam a vida, segundo o estudo de um médico americano morto em 1920.

Aqueles 21 gramas seriam o peso da alma, mas não é exatamente uma tarefa simples explicar o conceito de alma para uma criança que ainda não sabe tomar sorvete sem encharcar a camiseta da escola.

Ensaio: "E é porque não temos respostas que passamos a vida angustiados ou escrevemos, assistimos filmes, ouvimos música…"

Naquele momento me imaginava em cima da carteira, cercado de jovens com olhares curiosos como os em torno do professor John Keating, personagem de Robin Williams em "Sociedade dos Poetas Mortos": "pois não lemos e escrevemos poesia porque é bonitinho. Lemos e escrevemos poesia porque somos membros da raça humana e a raça humana está repleta de paixão. Poesia, beleza, romance, amor… é para isso que vivemos!"

-Então para onde vão os dentes?, ele pergunta, finalmente.

Na comunicação visual do retrovisor, ficamos de voltar ao assunto em breve, mais ou menos como quando discutimos que seria ok atender aos milhares, milhões de pedidos diários dele para trazer um porquinho-da-índia para casa.

Ele escolheu o bicho, ele deu o nome (Paul, de Paul McCartney), ele definiu como seria a casinha, onde ela ficaria, e é ele quem leva agora para o novo amigo a couve e um beijo de boa noite antes de dormir. Dias atrás, soltou um primeiro "eu te amo" para o roedor.

A dúvida, na hora de atender ao pedido, não era se o bicho daria muito trabalho, se haveria espaço suficiente, se ele deixaria cheiro pela casa, se haveria condições de levar a casinha nas inúmeras viagens até a cidade das avós.

Nosso medo era outro. Era a longevidade.

Um porquinho-da-índia vive em média cinco anos. Isso se tiver a sorte de não desaparecer pela casa, não comer nada proibido nem ninguém sentar em cima dele no sofá ou arrastar os móveis de forma desastrada.

Nosso filho fatalmente se apaixonaria, como se apaixonou, pelo bicho. Certamente seria sua companhia nas melhores horas do dia. Como lidaria com a perda quando chegasse "a" hora?

Em uma hipótese otimista, ele terá 11 anos quando precisar se despedir. Muito cedo para suportar o baque, não?

Sim, é, mas no fim concordamos: antes da perda, ele vai aprender a cuidar. A gostar. A cativar e ser cativado, como (não) sabemos desde "O Pequeno Príncipe".

Confiar é fechar os olhos, e foi assim que corri para dentro, para não ver a cena final, quando ele colocou o bicho no peito e atravessou a rua, sozinho, para mostrar o novo amigo aos vizinhos — por um milagre ninguém tropeçou ou caiu quando o Paul passou de mão em mão entre gritos e empolgação incontidos da molecada.

Entre uma tarefa e outra, alguém em casa aprendia na marra o que é confiar, enquanto outro entendia o que é a finitude. Qual a outra opção? Viver numa bolha de afetos superprotegidos? Fugir de tudo o que amamos com medo de perder um dia?

Volto à ordem do dia. As notícias do hospital preocupavam, mas estávamos atentos e confiantes na retomada da força que desaparecera temporariamente do braço de minha avó, vítima de uma isquemia leve mas suficiente para provocar mudanças de hábitos e alertas de cuidado redobrado.

No Natal, quase recuperada, ela atravessou boa parte do estado ao lado do meu vô, que aos 82 anos dirigia com o nariz enterrado no volante para enxergar melhor, dar um abraço no bisneto, ouvir suas mil e uma histórias sobre estátuas (o assunto que ele mais gosta na vida, depois do porquinho-da-índia) e voltar para casa no dia seguinte, entrando no carro devagar, os gestos limitados, o olhar de quem observa nas crianças um pedaço do que um dia foi também sua infância.

Nada disso está claro quando ainda mastigamos com nossos dentes de leite. Depois disso, o que se impõe é uma força perene, invasiva, quase brutal.

Minha vontade é dizer, com o fatalismo de quem se finge indiferente, "bem-vindo à vida, meu filho. Enquanto estivermos todos aqui, essa vai ser sempre a melhor parte da viagem".

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.