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Matheus Pichonelli

Como um diagnóstico salvou Greta Thunberg de ser só uma pirralha silenciada

Matheus Pichonelli

12/12/2019 04h00

Greta Thunberg (Cristina Quicler/AFP)

Jair Bolsonaro chamou Greta Thunberg de pirralha na terça-feira (10). Estava irritado com o espaço concedido pela imprensa para a jovem sueca, que havia atribuído a morte de dois indígenas da etnia guajajara à defesa da Amazônia.

No dia seguinte, a ativista de 16 anos foi eleita a "pessoa do ano" pela revista Time, desbancando o próprio presidente brasileiro.

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A resposta de Greta Thunberg ao capitão ajuda a entender por que ela se tornou a pessoa mais jovem a receber a menção. Ao saber que sua opinião fora deslegitimada pelo presidente por conta da sua idade, Greta correu para mudar sua descrição nas redes sociais: assumiu para si o título. Pirralha, sim senhor.

Estava desenhada ali a envergadura de uma disputa que começou bem antes de ela se recusar a ir à escola todas as sextas-feiras para protestar contra o aquecimento global, assunto que ela aprendeu na própria sala de aula e a levou a um inconformismo profundo diante da inação das pessoas ao seu redor, inclusive dos professores. A onda começou em Estocolmo e se espalhou pelo mundo. E, por mais que incomode os que negam o aquecimento por ter passado frio no último inverno, não tem hora para acabar.

Enquanto Bolsonaro e seu ministro da Justiça, Sergio Moro, são homenageados com placas construídas por apoiadores com cartuchos de bala, o mundo tenta entender o que faz de Greta Thunberg um símbolo da sobrevivência no planeta.

O curioso é que, se dependesse dos valentões que atribuem ao politicamente correto todos os males do mundo, e que esperneiam em público quando contrariados, Greta hoje estaria silenciada, esquecida e provavelmente deprimida em algum canto da sala de aula mediada por metas, desempenho, hierarquias e comportamentos protocolares.

No livro "Nossa casa está em chamas – ninguém é pequeno demais para fazer a diferença" (Editora Best Seller, do Grupo Record, R$ 39), a cantora de ópera Malena Ernman, mãe de Greta, descreve o dia em que a filha, aos oito anos, parou de comer. 

O transtorno alimentar a levou a perder dez quilos em dois meses. Coube à psicóloga da escola, com vasta experiência em autismo, pedir uma investigação cuidadosas sobre a criança. 

O diagnóstico confirmou que Greta tinha síndrome de Asperger, autismo de alto-funcionamento, e TOC, transtorno obsessivo-compulsivo. Malena relata uma "dificuldade terrível" em aceitar que a filha tivesse transtorno de espectro autista (TEA).

O livro mostra como os pais e a escola de Greta tiveram sensibilidade em compreender a condição neuroatípica da criança para evitar que ela fosse silenciada por não ser igual a todos –exatamente o que tentou fazer Bolsonaro ao chamá-la de "pirralha".

No livro, a mãe cita diversos discursos e textos da ativista. Em um deles Greta fala sobre seu diagnóstico: "Tem gente que caçoa de mim por causa do meu diagnóstico. Mas Asperger não é uma doença, é um dom. Tem também os que dizem que, como tenho Asperger, eu não poderia ter me colocado nessa posição. Mas é exatamente por isso que me coloquei nessa posição. Porque, se eu fosse 'normal' e social, eu teria me afiliado a uma organização ou começado uma sozinha. Como não sou tão boa em socializar, fiz isso. Eu estava muito frustrada porque nada estava sendo feito em relação à crise climática e senti que tinha que fazer alguma coisa, qualquer coisa. E às vezes não fazer nada —como ficar sentada do lado de fora do Parlamento —tem muito mais impacto do que fazer coisas. Assim como um sussurro às vezes faz mais barulho do que um grito". 

Quem conhece pessoas com esse espectro de autismo no ciclo pessoal sabe como é a relação delas com a verdade: pouca coisa provoca mais estresse do que contradições, mentiras, provocações baratas, tentativas de trapacear. 

Pessoas como Greta teriam dificuldades imensas em conviver com quem dá uma declaração falsa ou imprecisa a cada quatro dias, e que até outubro já acumulava 400 informações distorcidas em seus pronunciamentos. A maior delas é fingir que seu discurso contra ONGs, contra fiscalização e a favor do garimpo em reservas não alimentou com querosene o desastre ambiental de seu primeiro ano de mandato. 

Teriam também dificuldade em fingir alguma sociabilidade com outro mentiroso contumaz, o presidente americano, Donald Trump, a quem o livro dedica o capítulo "Pense grande nos negócios e na vida" –uma referência irônica a um de seus best-sellers. 

"Donald Trump encarna o pior da nossa sociedade. Ele é o fim do nosso tempo, mas há muito tempo vivemos no mundo dele. No mundo dos vencedores. Um mundo onde tudo tem que se expandir", descreve Malena Ernman.

Em outro capítulo, a mãe da ativista conta como ela se revoltou, certa vez, ao ouvir o primeiro-ministro sueco falar na TV que o problema do meio ambiente era de todos. 

"Ele está mentindo! Ele disse que o problema são os humanos, mas não é verdade. Nem todo mundo é culpado. São poucas pessoas e, para salvar o planeta, devemos lutar contra eles, as empresas deles e o dinheiro deles, e fazer com que eles assumam a culpa", disse Greta, revoltada.

Se alguém ainda se pergunta o que podem os pirralhos contra os adultos da necropolítica, a homenagem da revista Time pode ser um caminho.

De um lado, está o futuro.

Do outro, não está só o passado. Está o fim.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.