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Matheus Pichonelli

Pátria casta Brasil: o slogan para tempos de abstinência

Matheus Pichonelli

30/01/2020 04h00

A ministra Damares Alves. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

 

Quem tem várias relações sexuais durante a juventude é como uma fita adesiva.

Você cola no braço de uma pessoa. Em seguida, tira e coloca no outro. 

Na quinta ou na sexta pessoa a fita não gruda mais.

Fica larga.

Assim é a alma da menina: depois de muitos parceiros, não cola com mais ninguém.

O exemplo foi usado pela ministra Damares Alves (Mulheres, Família e Direitos Humanos) durante uma entrevista para explicar a eficácia da abstinência sexual para combater a gravidez precoce na adolescência.

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É de se imaginar o que a ministra dirá daqui a alguns anos a alguém que, com medo de virar fita adesiva sem cola, resolveu esperar a vida toda por uma pessoa que aprendeu o que era sexo no Xvideos e foi testar outras aderências quando dizia sair para pescar com os amigos.

Quem acompanha a discussão com um elefante (e não só uma pulga) atrás da orelha é prontamente acusado de conivência com a sexualização infantil, mas a discussão merece contexto. Não vale recorrer à caricatura.

Damares tem feito um grande esforço para circundar a discussão a uma questão de saúde pública ao dizer que a proposta amplia, e não substitui, outros métodos contraceptivos, como a distribuição de preservativos.

Fica difícil acreditar nisso quando seu próprio chefe, Jair Bolsonaro, manda rasgar páginas consideradas inadequadas da "Caderneta de saúde da adolescente" que continha (pasmem!) desenhos sobre como usar uma camisinha. 

Pois quanto mais Damares se estende no assunto, mais dúvidas deixa no ar sobre o que de fato se está combatendo.

A gravidez precoce ou o sexo?

O timming é providencial: a campanha deve chegar às ruas no começo de fevereiro, mês do Carnaval — aquela festa perversa que o presidente disse ter virado um grande golden shower em sua última edição. 

O público-alvo das peças são jovens de 10 a 18 anos.

A analogia com a fita adesiva dá pistas sobre a essência da coisa toda: é a menina, e não o menino, que ficará com a alma alargada, descartada e descartável se não se guardar para sua alma gêmea e decidir se jogar na balada por pressão das amigas. A fita está mais perto dos 18 que dos 10, portanto.

"Queremos falar sobre amor, sobre afeto", jura Damares.

Em entrevista ao jornal "O Globo", a professora de ginecologia e obstetrícia da Universidade Federal de Campina Grande (UFCJ) Melania Amorim lembrou que esse tipo de programa só prepara os jovens para abstinência. Quando se inicia a vida sexual, a pessoa não está preparada para contracepção e a prevenção de doenças, tornando-se assim mais suscetível. 

Além disso, disse a especialista, o país nunca chegou a investir como deveria nas estratégias para redução das taxas de gravidez precoce. 

No centro do debate há também uma questão social: enquanto nos extratos mais ricos e com mais educação as taxas de gravidez na adolescência são menores, nas classes mais baixas, muitas vezes, "a maternidade é vista como mecanismo de ascensão social". Isso porque "a menina que engravida e se torna mãe acredita, pelo que vê e reproduz, que deixa de ser uma menina, é como se estivesse ascendendo".

Não se sabe como contrapontos de especialistas como Melania Amorim são levados em conta nas discussões da campanha "Eu decidi esperar" do governo. 

O que chama a atenção, até aqui, é como, neste e outros projetos, a moralidade encontra eco na linguagem bolsonarista, mesmo quando tenta disfarçar.

Há poucos dias, o ministro da Economia, Paulo Guedes, aventou a possibilidade de criar um certo "imposto do pecado" para desestimular o consumo de produtos com excesso de açúcar, além de cigarro e bebida.

São propostas de naturezas e objetivos distintos que se conectam pelo léxico, como quando os apoiadores do presidente, ao lançar um manifesto de seu futuro partido, falam em combater a "degradação moral" do país. Ou quando o youtuber favorito da turma explica a relação entre masturbação e morte de neurônios.

Esse combate contra "imoralidades" tem como ponto de partida o controle dos corpos e desejos, que deveriam desde cedo ser tutelados e obedientes diante de uma autoridade moral que o Estado tenta agora encarnar.

Não bastasse a tia perguntar sobre os namoradinhos, agora é uma representante do Estado que diz para a jovem que se ela pode se tornar uma "fita" descartável de alma alargada que não cola em ninguém. A psicanálise ensina que esse império edificado na culpa pode se converter, no futuro, em adultos amargurados, transtornados, recalcados, reprimidos e perversos.

Na obra de Nelson Rodrigues é possível entender como essa moral à brasileira se frutificou em um cenário de "vaidades e ressentimentos, desordem amorosa, ciranda de quiproquós, fracasso e autodestruição obsessiva", como definiu Ismael Xavier ao analisar o trabalho do "anjo pornográfico". 

Essa obra é marcada pelo "desfile de maridos enciumados ou mulheres insatisfeitas a tramar cenários de vingança" e um "congresso de filhos da culpa, habitantes de um mundo à deriva porque separados de um estado de pureza ideal que nenhuma experiência histórica pode ensejar".

Na tentativa de combater outros males, o governo Bolsonaro transformou um país inteiro em uma trama do tipo "A Mulher sem Pecado" e "Viúva, Porém Honesta".

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.