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Polêmica sobre "nova era" para meninos e meninas é mesmo cortina de fumaça?

Matheus Pichonelli

08/01/2019 04h00

O presidente da República, Jair Bolsonaro e a Ministra da mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves durante cerimônia de posse no Palácio do Planalto em Brasília (DF). Foto: Fátima Meira/Futura Press/Estadão Conteúdo

Uma profusão de declarações com potencial de gerar polêmicas marcou a primeira semana do governo Bolsonaro.

A produção industrial de quiproquós fez com que boa parte da imprensa e dos formadores de opinião passasse os últimos dias peneirando o que, a partir de um juízo próprio, era notícia de fato relevante e o que era simplesmente "cortina de fumaça".

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Para muita gente, a polêmica sobre a cor da roupa de meninos e meninas, vinda de uma ministra que diz sonhar com um país habitado por príncipes e princesas e onde os homens trabalham para sustentar suas companheiras entrava automaticamente na categoria "bobagem", uma tentativa de desviar a atenção para o que realmente importa e afeta nossas vidas (economia, geração de emprego etc).

Deu tão certo que até o filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, foi ao Twitter pedir para que os professores evitem falar sobre feminismo em sala de aula.

Se fosse um tema menor, o novo governo não se esforçaria tanto para manter essa discussão no centro no palanque e, agora, da fala dos novos ministros.

Porque desvia a atenção do que "realmente importa"? Será?

A história da humanidade é a história de vencidos e derrotados. Isso é uma questão de observação, não de fé ou ideologia.

As posições neste tabuleiro não são definitivas: nas guerras ou no esporte, quem vence é responsável por administrar a vantagem. Aos derrotados cabem duas opções: se rebelar e pedir revanche ou aceitar a submissão.

A relação entre dominadores e dominados não é uma tensão apenas entre governantes e governados. Ela se aplica nas melhores famílias, que são um grande espelho das macro-relações de poder.

Pensando no exemplo doméstico, não parece ser fantasioso imaginar um caso clássico de dominantes e dominados se uma parte pode sair, trabalhar, ganhar dinheiro, tomar decisões, determinar destinos, beber com amigos, sair para andar de moto com os "parça" no fim de semana e a outra parte está fadada a cuidar da casa, dos filhos e, quando muito, do corpo, para não ser trocada por alguém com metade da idade.

O grau de liberdade, nas relações familiares, é determinado pelo poder econômico para escolher viver em certas circunstâncias ou não. Se a escolha exige resiliência e calmantes, então não é escolha.

A entrada da mulher no mercado de trabalho alterou uma antiga estrutura de poder. Em 2016, mulheres já eram maioria, por exemplo, entre doutores brasileiros titulados no exterior: 60%.

O poder decorrente desse fenômeno é um medo duplo para os homens que corriam sozinhos desde Adão: o de perder a responsável por cuidar da casa e o de ganhar concorrência pelas mesmas vagas na universidade e nas empresas.

No Brasil atual, a consciência desse poder e desses temores ganhou o nome de "ideologia".

Se conhecimento é poder, melhor apagar as luzes para ninguém perceber ou verbalizar o óbvio: a fantasia de princesa é um calmante baseado no conto da fragilidade; ela dá acesso apenas ao confinamento, e não ao mundo.

Na fala das novas autoridades, todas as metáforas sobre azul e rosa parecem caber na velha conversa da restauração da ordem. É o caminho natural das espécies, dizem, pois assim querem os deuses; o que não se conta é a carga emocional que a aceitação desse papel pode gerar em quem trocou o mundo pelo confinamento (de circulação, de talentos, de habilidades, de desejos próprios etc).

O novo governo promete restabelecer uma velha ordem com o desafio de gerar empregos e oportunidades; ensaia os primeiros passos enquanto demoniza e constrange quem luta por espaço, pelo direito de viver longe do assédio e defende a divisão de tarefas dentro de casa.

Esse novo comando parece acreditar que as mudanças econômicas só ocorrerão se uma parte da força de trabalho (sobretudo a feminina) sair de cena convencida, desde a escola, de que aquele não é o seu lugar – primeiro por "bem", dizendo ser esta a vontade não só da ministra, mas também da providência divina e da natureza; depois, sabe Deus como.

Em tempo. Se continuar assim, não vamos demorar para identificar, na vida real, paralelos com a distopia criada por Margaret Atwood no livro "O Conto da Aia", que inspirou a premiada série Handmaid's Tale.

No livro e na série, mulheres são proibidas de ler, trabalhar e circular livremente por espaços públicos, e são divididas em categorias como Esposas, Tias vigilantes ou escravas sexuais de seus Comandantes.

Chama a atenção, no livro e na série, o esforço desse comando para mostrar que a aceitação daqueles papeis é um bom negócio para todos.

"Aqui vocês estão protegidas para realizar seus destinos biológicos em paz", justifica um dos algozes em um dos trechos mais reveladores da obra.

No Brasil, qualquer semelhança com a ficção não é mera coincidência.

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Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.