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Põe até bandeira na sacada: o curioso caso do patriota que detesta o Brasil

Matheus Pichonelli

03/06/2019 04h00

De uns anos pra cá, o Brasil viu surgir um sujeito curioso: o patriota que não gosta do Brasil.

Você deve conhecer alguns.

Se não conhece, já esbarrou com algum tipo de manifestação, seja no grupo de WhatsApp, seja na sacada da área gourmet, onde, de vez em quando, geralmente aos domingos, ele estende a bandeira nacional e passa a tarde cantando que é brasileiro, com muito orgulho, com muito amor.

Aquela bandeira é quase uma risca de giz; de lá para trás, você sabe exatamente como ele pensa, como vota, o que detesta.

É como se todo mundo que estivesse do lado de cá do círculo não gostasse do próprio país. Pior: é como se não fizesse parte do mesmo país. Pior do que pior: é como se aquela bandeira separasse o joio do trigo, os bons dos maus brasileiros, quem tem e quem não tem caráter, quem ajudaria uma senhora a atravessar a rua e quem aproveitaria a situação para surrupiar-lhe a carteira.

Bem, quem me conhece de alguma forma, mesmo que por aqui, imagina que eu não tenha tenha estendido a bandeira nem saído às ruas com a camisa da CBF no dia 26 de maio, quando milhares de pessoas decidiram se manifestar a favor de tudo isso que está aí.

Por que você não gosta do Brasil?, me pergunta o seu Jair, vizinho das antigas, entusiasta da tal da marcha em apoio ao xará presidente, e que esfrega, de quando em quando, uma grande bandeira do Brasil na minha cara.

Pelo contrário, costumo dizer ao seu Jair.

Na brincadeira, como bons vizinhos costumam fazer, digo que gosto do Brasil, do Chile, da Argentina, do País de Gales. Digo também que quem não gosta do Brasil é ele. Quer ver?

O seu Jair, para começo de conversa, não gosta de Carnaval, nossa maior festa popular. Para ele serpentina e golden shower é tudo glitter do mesmo saco.

Para ele, qualquer batuque ritmado é "macumba", e toda "macumba" precisa ser chutada.

O seu Jair, apesar da camisa da CBF, detesta a seleção nacional ("um bando de vagabundo mercenário"). A masculina, porque da feminina ele quer nem ouvir falar.

O seu Jair também não gosta de MPB. Detesta o Chico Buarque, nosso último Prêmio Camões, a quem chama de comunista e analfabeto (sim, o Chico Buarque E o Camões).

Ele também não gosta de — na verdade, não suporta — filme nacional. Acha tudo uma pouca-vergonha. As cenas, os sotaques, os artistas. Para ele, são todos mamadores oficiais das tetas do país: não produzem, não geram renda, não trazem qualquer benefícios se não a vergonha. Não, o seu Jair não ficará até o fim da sessão de "Bacurau", filme de Kleber Mendonça Filho, que venceu o Prêmio do Júri em Cannes, para saber que a produção, rodada no sertão de Seridó, entre o Rio Grande do Norte e a Paraíba, gerou 800 empregos. Cinema, para ele, só vale se tiver xerife armado e carro capotando.

Não é só questão de gostar ou não desse ou daquele filme ou som; para ele, tudo o que ele não gosta precisa acabar.

Ah, sim, o seu Jair não gosta das universidades brasileiras. Detesta o patrono da educação nacional e não gosta de saber que seu dinheiro sustenta balbúrdias como pesquisas que podem curar a malária, que podem prever ou minimizar impactos de barragens mal planejadas, como a de Brumadinho, e que podem de alguma forma orientar o conhecimento para entender a relação entre trabalho alienante e saúde mental.

A birra com as universidades, dizem os vizinhos, tem uma explicação:  o seu Jair tem uma dificuldade imensa em compreender a diferença entre projetos coletivos e anseios individuais. Se não serve pra ele, tudo bem jogar fora –inclusive as pesquisas e as vagas nas universidades que os filhos não acessaram.

O seu Jair, que ama o Brasil, à boca pequena manifesta desejos separatistas. Está convencido de que seu estado, se "não carregasse nas costas as outras unidades da federação", seria uma potência econômica, militar e cultural como a Suíça, para onde alguns de seus ídolos costumam enviar uns malotes de tempos em tempos.

O seu Jair tem um estoque de piadas contra todo tipo de migrante e imigrante que ajudou a construir o seu país.

É uma espécie de anti-Policarpo Quaresma, o patriota-raiz de Lima Barreto que "estudou a Pátria nas suas riquezas naturais, na sua história, na sua geografia, na sua literatura e na sua política; que sabia as espécies de minerais, vegetais e animais que o Brasil continha; sabia o valor do ouro, dos diamantes exportados por Minas, as guerras holandesas, as batalhas do Paraguai, as nascentes e o curso de todos os rios; que defendia com azedume e paixão a proeminência do Amazonas sobre todos os demais rios do mundo". E "ai de quem citasse o Nilo na sua frente!".

Para o seu Jair, o Lima Barreto também é comunista. Ele acredita que a Amazônia está fazendo hora, que os índios precisam largar mão de vagabundagem e começar a cortar cana; que é melhor transformar a floresta em um grande estacionamento e trazer a Disney pra cá, porque os americanos, sim, sabem administrar suas áreas de lazer, sabem produzir filmes sem doutrinação, sabem fazer música sem mensagem cifrada, sabem fazer qualquer coisa em nome da pátria e da bandeira, inclusive a guerra.

O seu Jair é tudo, menos um caso raro.

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Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.