Ninguém quer paz e amor hoje: por que a edição 2019 de Woodstock flopou?
Matheus Pichonelli
12/08/2019 04h00
Cena do filme "Aconteceu em Woodstock", de Ang Lee
John Lennon não estava entre as atrações de Woodstock em 1969, mas uma frase dita por ele, naquele mesmo ano, ajuda a explicar o sucesso do festival cujo slogan oficial era "Uma Exposição Aquariana: 3 Dias de Paz & Música".
Há 50 anos, quando a década dos Anos Incríveis se encerrava, o beatle foi chamado por alguns críticos de "palhaço do ano" por conta de seu ativismo contra a guerra do Vietnã. Ele tinha acabado de devolver para a rainha da Inglaterra a medalha da Ordem do Império Britânico, em razão do apoio do seu país ao conflito. Ao ser indagado, ele lembrou que as pessoas sérias, como Kennedy, Luther King e Gandhi, haviam sido assassinadas. Para ele era motivo de orgulho ser o palhaço do ano "num mundo em que gente séria está se matando e destruindo em guerras como a do Vietnã".
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A estupidez daquele conflito, somada à memória ainda recente das atrocidades da Segunda Guerra Mundial, era razão suficiente para que muitos jovens daquela geração, e Lennon era um deles, rejeitassem o estilo de vida dos pais e avós que produziram (ou não conseguiram interromper) tantas catástrofes ao longo do século. Todos ali eram, de alguma forma, sobreviventes, e celebrar a vida, pensando em um outro mundo possível, era uma forma de enfrentar a sombra ainda presente da morte.
Esse era o espírito do tempo em agosto de 1969, quando cerca de 400 mil pessoas, metade delas sem pagar ingressos, desembarcaram num verdadeiro pasto de uma propriedade rural no município de Bethel, no estado de Nova York, para assistir a três dias (e meio) de concerto povoado por símbolos da liberdade e slogans de paz e amor.
Foi uma catarse, e também o sinal de que o amor podia vencer o ódio, que a caretice das gerações anteriores estava enterrada e que a música poderia unir mais vozes do que as metralhadoras de uma triste trincheira.
Mas, 50 anos depois, por que a edição do Woodstock prevista para ser uma grande celebração em 2019 flopou?
O "Woodstock 50", como seria chamado o evento, enfrentava havia meses problemas financeiros e de autorização. Miley Cyrus, Jay-Z, John Fogerty, Carlos Santana, Joe McDonald: em um ano, nomes da nova e da velha geração foram desistindo de participar da celebração, que seria realizada num anfiteatro em Columbia para menos de 30 mil pessoas.
Era a crônica de uma morte anunciada. Na nova roupagem, não era só a claustrofobia dos novos tempos que afastava Woodstock das origens. A primeira edição do festival, afinal, foi uma revolução, e só foi uma revolução porque parte dos presentes não tinha ideia de onde estava indo, nem como, nem para quê. Eis os motores das grandes mudanças de qualquer época, marcadas pela espontaneidade e pela imprevisibilidade – que em 1969 encontrou o espírito contestatório do tempo para canalizar o grito de toda uma geração.
Ah, sim: é preciso reconhecer também um certo grau de irresponsabilidade/inconsciência para se embrenhar num local até então desconhecido só na base do boca-a-boca (o amadorismo das instalações era proporcional ao encantamento daquele desembarque de afetos, como mostra o filme "Aconteceu em Woodstock", de Ang Lee).
Em 2019, os slogans são bem outros, e não só porque os investidores já se apropriaram deles e inflacionaram os espaços hoje restritos.
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O nó é que a memória dos grandes desastres do século 20 hoje está com as bordas borradas, a ponto de não assustar mais ninguém – tanto que poucos se importam em dançar à beira do abismo, ilhados, em bolhas, fones de ouvido e rotas certas, se tempo a perder, desenhadas pelo Waze. Pelas ruas, andamos o tempo todo calçados no slogan "me deixem em paz sem amor". Não à toa a geração Y é a que menos faz sexo desde os nascidos em 1920.
Poucos temem a guerra, e muitos rejeitam o estilo de vida dos pais e avós que se deleitaram nos anos de paz de amor e deixaram aos filhos e netos um mundo em crise.
O pêndulo da história mudou, e talvez seja necessário voltar a Jonhn Lennon para entender o porquê. Em 1980, quando a era Thatcher-Reagan ainda se iniciava, o autor de "Imagine" foi assassinado com um tiro por um fã em frente ao edifício Dakota, em Nova York. O tiro alvejou também a crença de que os palhaços, ao idealizarem um outro mundo, estavam imunes às perversidades do mundo real. The dream is over.
Veio, então, uma era de austeridade. De sonhos direcionados a prédios espelhados de escritórios e planos de voo individuais. Veio a Aids. A guerra às drogas. O 11 de Setembro. As guerras preventivas. Se jogar no mundo ficou perigoso. Com medo, preferimos nos trancar. E tudo o que um dia se deslumbrou como liberdade foi, pouco a pouco, substituído por um punhado de segurança e inveja de quem viu e viveu o que pra nós é só um quadro na parede.
Sobre o autor
Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.
Sobre o blog
Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.