"365"? Não! Homens na crise da meia-idade piram na série "Quase Feliz"
Matheus Pichonelli
06/07/2020 04h00
Sebastián Wainraich e Natalie Pérez, o ex-casal da série argentina "Quase Feliz". Foto: Divulgação/Netflix
O que era uma pequena ilha infrutífera, cercada por um latifúndio capilar de todos os lados, hoje é uma estrada aberta, visível e já indisfarçável pela franja esticada até o limite do olho direito. Por causa dessa cratera, adotei o boné para qualquer situação.
Boné para caminhar.
Boné para falar na live com amigos.
Boné para ouvir música. Para jantar. Para tomar banho. Para dormir.
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A dúvida, hoje, é se devo ou não aparecer no trabalho com minha cobertura aérea do Chicago Bulls quando a quarentena acabar.
O boné é o esparadrapo da contenção do tempo que, acelerado pelas partículas angustiantes da pandemia, nas últimas semanas passaram feito um trator nas cabeças dos jovens adultos.
Deve ser por isso que tanta gente, como eu, se compadeceu com o errático personagem Sebastián (Sebastián Wainraich), de "Quase Feliz", série argentina que estreou em maio, no meio da quarentena e sem muito alarde, na Netflix.
Sem muita paciência para séries, decidi ceder após a indicação de mais ou menos dez amigos em idades e conflitos parecidos a essa altura da vida. Todos usuários de boné.
O Seba é um radialista, meio entrevistador, meio apresentador de stand-up, aparentemente descolado que, como vocês já imaginaram, usa boné para disfarçar a careca, tem a barba (branca) por fazer, veste jaquetas coloridas e camisetas estampadas enquanto vê a vida que levou até então desmoronar.
A nova exige novos papéis. Ela vem com filhos (gêmeos), um casamento fadado à mesmice e a insegurança de ver seu ofício ganhar as cores da decadência.
Assim como seu criador, o radialista da série é ainda o sujeito parado nas ruas para distribuir autógrafos e fazer selfies com os fãs, mas eles já não têm a mesma cara de antes. Quando jovens, explicam a tietagem dizendo que a foto é para os pais ou avós, os fãs fiéis do seu programa. O nome da atração é alegórico: "Metade da Vida".
Neste programa ele narra a dor e as delícias de não ser mais o que pensa que é.
Recém-separado, Seba é o arquétipo da música-tema e homônima da série, feita sob medida pela banda Miranda. Quando termina a sexta à noite, ele fica bêbado sozinho, vai para cama pensando que comeu demais e que é quase feliz. O quase, aqui, não é detalhe.
Embora do lado de lá da margem dos 40, ele ainda é o jovem superprotegido pelos pais e dependente emocionalmente da ex-companheira, de quem se ressente por ser tratado como amigo ou parente e não "como homem" — é do que se queixa em um dos diálogos.
Em outras palavras, Seba é uma espécie de anti-Massimo, o bonitão confiante (e abusivo) de "365", a versão atualizada do drama erótico (e igualmente problemático) "50 Tons de Cinza" da Netflix.
Mesmo sendo um pai presente, ele só consegue ver beleza no novo papel quando as crianças pegam no sono. Está, assim, o tempo todo emparedado pelos pais que o infantilizam, pela ex que cobra dele maturidade e pelos filhos (sobretudo a filha) que veem em sua hesitação sintomas dos privilégios da masculinidade.
A duras penas, ele descobre que o papel de jovem incompreendido já não é charme nem garantia de compreensão.
As tentativas de aproximação com os filhos terminam quase sempre em fiasco –e com pedido de ajuda da mãe, a organizadora oficial de afetos da casa. O fracasso deixa de ser nuvem e compete com ele em protagonismo na mesma história.
Seba não é nem o protótipo do adulto que esperam dele nem do adolescente que vê e rejeita por toda parte. Está sempre no meio-fio, em contraste com o irmão irresponsável –mulherengo e incapaz de buscar os exames de uma possível doença grave porque não quer estragar a viagem no fim de semana– e a segurança aparente do professor barbudo e de terno por quem sua ex-companheira se apaixona (spoiler, desculpa).
Entre cômico e o trágico, Seba é um homem que descobre que envelhecer é ver o mundo em volta envelhecer. Ele entra em parafuso quando perde seu terapeuta, um senhor de idade avançada que servia como referencial simbólico de um tempo em que até o tempo era possível controlar.
Solto, o jovem adulto nascido numa janela entre as gerações X e Y passa a conviver mais tempo com os jovens produtores de seu programa do que com qualquer pessoa de sua família. Um deles é o típico representante da geração seguinte, conhecida como Z e nascida depois de 1995. Passa o tempo todo quieto com fones de ouvido na orelha e não faz a menor questão de disfarçar que não dá a mínima para o chefe e seu modo de vida. Menos ainda para a ideia de "carreira". Diferentemente da geração anterior, trabalho para ele é trabalho e ponto, não uma missão.
O outro produtor, mais receptivo, é logo adotado como pai, filho, amigo, conselheiro e responsável por organizar a rotina do protagonista tiozão. Inclusive o que entra e o que não entra no roteiro de seu programa. É a passagem sutil de bastão a olhos nus.
Num texto recente sobre o ocaso da geração millennial (a minha), o antropólogo Michel Alcoforado, colunista do TAB, me explicou que parte da crise dessa geração que hoje envelhece é que foi vendida a ela uma ideia de que era preciso ser alguma coisa na vida e encontrar no trabalho uma forma de satisfação e felicidade. Isso criou uma multidão frustrada e em crise permanente, que já fez mochilão em ano sabático, já trabalhou de graça para aprender, já se lambuzou e se decepcionou com a vida em rede e agora quer fugir para o mato e se desconectar de tudo.
Fora do estúdio, o sujeito atrapalhado e engraçadão que faz a audiência sorrir e se identificar se confronta com uma melancolia latente de quem escorrega num futuro incerto e gira em falso num passado que tenta retomar em flash back em busca de resposta. A maior delas: como conseguiu perder o amor de sua vida?
Nos muitos diálogos com Pilar, sua ex-companheira, fica evidente que ela esperava outra coisa da vida a dois. O que ela esperava, no entanto, é a grande questão da vida do protagonista e seus espectadores. Talvez um pai mais participativo, e não só presente; alguém que ofereça abrigo, e não frases do tipo "qualquer coisa estamos aí"; alguém que se abra mais, jogue menos na ambiguidade e não espere que o destino faça estragos para depois tentar consertar. Alguém menos "quase", enfim.
Em uma das cenas, Seba confessa ter saudade de quando tinha 20 anos não porque podia se perder sem ser punido, mas porque o futuro parecia minimamente organizado naquela idade. Ele sabia o que ia fazer no dia seguinte, aonde ia, o que iria comer, do que gostava, etc.
Perto dos 40, a crise vira tempestade perfeita quando ele percebe que será também destronado no único ambiente terapêutico em que consegue não ser o menino tímido e com dificuldade com as palavras que marcou sua infância. O rádio, um veículo de massa desde o século passado, está prestes a ser invadido por um novo tipo de profissional e a linguagem das redes.
Como seu personagem, a série argentina não rendeu exatamente um buzz por aqui –ao contrário de "365", uma das mais assistidas da plataforma.
O dilema do protagonista é o dilema de todo mundo que já veste o boné para driblar a idade: a decadência é irrefreável, mas ela parece mais cruel com quem chegou à vida adulta com mais dúvidas do que respostas, mais crises do que soluções prontas para tudo.
É o drama cantado pela banda que lotava estádios até outro dia antes de também submergir: "Esse é só o começo do fim da nossa vida".
Sobre o autor
Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.
Sobre o blog
Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.