Cineasta faz de "Músicas para Morrer de Amor" um manifesto contra o cinismo
Matheus Pichonelli
24/08/2020 04h00
Denise Fraga e Caio Horowicz em cena do filme "Músicas para morrer de amor". Fotos: Divulgação/Vitrine Filmes
Dias atrás, depois de saber que o teste dela tinha dado positivo para covid-19, decidi escrever nas redes como era estranho, para a gente, ficar longe, mesmo na mesma casa. Como meu teste e o do nosso filho dera negativo, montamos, por precaução, um cordão sanitário entre os corredores para os quartos e a sala, onde passei a dormir com ele.
Embora sem sintomas, o distanciamento forçado, entre máscaras, lembrou os dez anos de relacionamento à distância, com todos os perrengues dos relacionamentos à distância. Foram seis anos de namoro e quatro de casamento assim, entre bate-e-voltas no fim de semana de São Paulo para o interior e vice-versa.
De 2014 para cá, já sob o mesmo teto, nos acostumamos a fazer tudo, mas tudo mesmo, juntos. A ponto de não saber qual a minha toalha ou escova de dentes no nosso banheiro.
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Foram alguns dias de tensão, encerrados apenas com a notícia do segundo teste, que apontou a presença de anticorpos e não mais do coronavírus. (Estamos bem, apesar do susto, e do abalo emocional da notícia).
Nesse período, uma música não me saiu da cabeça. Cantados por Nando Reis, os versos falavam de alguém esperando que o tempo voasse para que a pessoa amada retornasse e pudesse ser abraçada e beijada de novo.
Sei lá por que diabos quis dividir isso com as redes, mas o arrependimento veio segundos depois. No mesmo domingo, uma leitora me escreveu no Facebook para reclamar da pieguice dos meus textos. Fiz um favor a ela, e agora ela não terá seu feed contaminado pelo meu sentimentalismo barato.
Em outros tempos, teria revisto minha hospedagem naquela rede, mas por sorte havia conversado dias antes, por telefone, com o cineasta Rafael Gomes para falar exatamente de como, de um tempo pra cá, sentimentalismo virou palavrão em uma época mediada pelo cinismo.
Rafael Gomes é diretor de "Música para Morrer de Amor", filme que foi exibido no circuito drive-in no penúltimo fim de semana e está disponível, desde o dia 20 de agosto, nas plataformas de streaming. O filme é baseado na premiada peça "Música para Cortar os Pulsos", com os mesmos atores e direção, e que tem rasgado corações desde a estreia, no começo da década.
Conta a história de um grupo de amigos que transitam em uma metrópole onde encontram e experienciam as diferentes formas de se amar. Ricardo (Victor Mendes) é apaixonado por Felipe (Caio Horowicz), que é apaixonado por Isabela (Mayara Constantino), que tenta se reerguer após ver o namorado (Ícaro Silva) sair de casa a trabalho e não voltar.
Entre ruídos, beijos e aforismos ("certas pessoas jamais teriam se apaixonado se não tivessem ouvido falar do amor"), eles circulam em um ambiente libertário, entre festas e encontros em repúblicas não mais de estudantes, mas de jovens adultos tentando sobreviver na tal selva de pedra, concreto e impessoalidade. Aqui e ali, os limites dessa liberdade começam a aparecer, como quando o casal de amigas do trabalho traz uma outra mulher para o relacionamento e começa a lidar com questões como ciúmes, responsabilidade afetiva, etc.
Talvez impactado pela vida adulta, talvez por não transitar nos espaços mais descolados das grandes cidades há uns bons seis anos, talvez por observar uma mudança de ares num tempo em que só podemos nos apaixonar por nós mesmos e pelas metas profissionais, perguntei ao diretor se fazia sentido imaginar que ele acabava de lançar um filme que capturou o espírito de uma época, mas uma época que, se não tinha acabado, estava no fim. Uma época em que ainda era possível se apaixonar durante um show de música ou uma apresentação da Virada Cultural.
Ele concordou discordando. Para além de lançar um filme que celebra (mas não idealiza) o amor romântico em um contexto de pandemia, quando o encontro dos corpos está naturalmente suspenso, a produção chega ao público em um momento de virada, marcada por ataques à classe artística, mais libertária por natureza (os personagens trabalham em um departamento cultural), restrições e policiamentos em curso em relação ao convívio e os afetos que transbordavam livremente, na medida do possível, nesta cidade retratada. Existia amor em São Paulo, lembra?
"Aquela vida, mesmo que volte a ser um pouco como era, já não será a mesma. Do lugar onde estou já parti. Essa é a sensação. Isso por um lado me deixa arrasado", diz o diretor.
Ele conta perceber, em seu círculo pessoal, uma espécie de "aversão à intensidade" cada vez maior. Tudo ficou ainda mais complicado pela mediação das telas, que se tornaram onipresentes e, no filme, servem como interdição entre os atores das "narrativas de si".
"Durante essa década, sinto que a gente tem se fechado muito, se tornado mais cínico e irônico com a própria sentimentalidade. Mas, ao mesmo tempo, pensando na minha experiência, percebo que essa sentimentalidade está lá represada. Só precisa que alguém diga: 'pode ser, pode fazer'."
Para ele, a sociedade tem se fechado por medo. "É tanto ataque, tanta coisa de que a gente tem que se defender, que de fato a gente acaba represando muito sentimento. Fazer filme é também dizer: 'tá tudo bem, pega na minha mão, olha no meu olho, vamos chorar juntos. Vamos deixar essa música rasgar a gente um pouco'."
Como o título sugere, as músicas do filme não estão lá por adereço. São personagens vivas de uma história que já começa com os versos de Cazuza, talvez o compositor brasileiro que mais viveu a vida em toda a sua intensidade, em "Maior Abandonado".
São, ao todo, 35 fonogramas pensados e inseridos no filme pelo diretor musical, produtor e ex-repórter da Folha de S.Paulo Marcus Preto. Tem um pouco de tudo ali: de Bach a Garlos Gardel, passando por Karina Buhr e Caetano Veloso.
Foi Marcus Preto quem fez o meio-campo com os artistas que aparecem em cena cantando ou interpretando seus próprios papéis: Maria Gadú, Fafá de Belém, Tim Bernardes, Maurício Pereira, Clarice Falcão, Cesar Lacerda e Milton Nascimento, de quem a participação renderia um filme à parte.
Durante a apresentação de Milton no Coala Festival, em 2018, ficou combinado entre as equipes do show e do filme que um dos atores subiria ao palco para fazer uma declaração de amor. Faltou avisar apenas os técnicos de som, que tiraram de lá o personagem apaixonado. O público, sem entender nada, entrou na brincadeira e vibrou.
É esse tipo de sentimentalismo rasgado que o filme tenta resgatar. "As pessoas percebem que existe um terreno de uma certa liberdade para serem menos cínicas não só em relação a si. O avesso (a esse cinismo) está lá planando, esperando chacoalhar", diz Rafael.
Para o diretor, o filme joga luz e constata, sem fazer apologia aberta nem problematizar a ponto de questionar a validade, a quebra de modelos tradicionais de relacionamento. "O modelo da família monogâmica heterossexual é muito arraigado. É mais forte do que a gente pensa. Acho lindo quem vive outras experiências, mas, ao mesmo tempo, os modelos antigos estão sempre criando problematizações, deles e dos novos modelos, e isso vira um grande caldeirão de incertezas. E nos retraímos cada vez mais."
Segundo o cineasta, as pessoas andam avessas aos relacionamentos e à criação de laços mais profundos. "A própria denominação de amor é antiga, mas válida. Você quebra o paradigma e põe o que no lugar?"
Ao mesmo tempo, Rafael, que se define como um velho millennial, diz observar com atenção como as gerações mais jovens estão "realmente e vivamente experimentando essas novas possibilidades".
É de olho nessa vitalidade ora suspensa que o filme serve como antídoto para a solidão das pessoas dessas capitais, como dizia um antigo compositor cearense para quem nem tudo é divino, nem tudo era maravilhoso.
"Hoje você vive tantos contatos e interações virtuais que acaba organizando uma narrativa para você mesmo nas telas, nas redes. Isso dá uma sensação de preenchimento, mas em essência você está sozinho. Em vez de buscar mais as relações corpo a corpo, a gente vai sistematizando essa solidão, acaba fugindo mais, e se distanciando tanto daquilo que já não sabe mais como fazer. Na hora que você vai se envolver aquilo te dá mais medo, mais aflição. Isso reatroalimenta as duas coisas: a essa solidão com o cinismo e um certo fechamento para uma vida mais intensa, mais aberta, mais rasgada."
Para quem anda trancafiado em casa e tem vergonha do que dá dentro da gente e não devia, "Música para Morrer de Amor" ajuda a iluminar quem ainda pretende descobrir no último momento um tempo que refaz o que desfez. E que, como nos versos de Chico Buarque, recolhe todo o sentimento e bota no corpo uma outra vez.
Sobre o autor
Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.
Sobre o blog
Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.