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Matheus Pichonelli

Inteligente, supervibrador vai aposentar quem não tem nada na cabeça

Matheus Pichonelli

10/08/2020 04h00

Neurodildo (René Cardillo/Arte UOL)

Quarentena, dia 140.

No zap dos meninos, chegou como uma bomba a notícia de que já está em campo um supervibrador capaz de controlar velocidade e movimento sexual apenas pelo pensamento de quem o maneja.

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Um dos membros (sem trocadilho) do grupo já mobiliza campanha #DigaNãoAoDildo e encomendou ao seu gabinete do ódio particular a confecção de mensagens fake associando o instrumento a um ataque frontal (também sem trocadilhos) à tradicional família brasileira. Bizarro, mas compreensível.

Ninguém ali admite, mas velocidade e controle não são exatamente técnicas que os amigos têm dominado ultimamente.

O neurodildo, como é chamada a invenção, articula, via tecnologia, dois componentes atrofiados ao longo do desenvolvimento cultural da nossa espécie: o cérebro e a inteligência. O primeiro é hoje uma interface do computador; o outro é artificial. Tem como competir?

A notícia chega num momento em que, ultrapassada a linha do quinto mês de quarentena, com poucas e rápidas saídas de casa, casais ou famílias começam a ser destroçados por outra síndrome além da covid-19. É a síndrome do convívio –também chamada de relação desigual de forças nas tarefas de cuidar uns dos outros, preparar ou servir alimentos e deixar a casa minimamente habitável.

Se antes era possível terceirizar o cuidado e engambelar o vazio afetivo com passeios, viagens, jantares, datas especiais e outros truques para escamotear nossa miséria cotidiana, agora estamos 24 horas por dia, sete dias da semana, sem disfarce nem lugar para onde correr quando o corpo avisa que a cabeça quer cair na real.

E o real, quase sempre, é um indivíduo deslocado no ambiente doméstico que disseram não pertencer a ele. O resultado é uma crise de relacionamento mundo afora e casas adentro talvez sem precedentes na história recente. 

O drama foi resumido, como ato de confissão, por um treinador de futebol que justificou a volta da atividade esportiva como "fator social para ajudar as pessoas que estão em casa enlouquecendo".

"Eu tenho amigos aqui que já se separaram, outros já bateram na mulher, outros batem nos filhos, estão enlouquecendo. Então se colocar futebol, pode ser que ajude em alguma coisa", choramingou Renê Simões, que aparentemente não cogita trocar de amigos.

De pantufas e pijama até o começo da tarde, os discípulos desse ideário perambulam pelo circuito sala-cozinha-quarto-banheiro implicando ou competindo com as crianças pela atenção da mãe sobrecarregada. Além de trabalho extra, ela convive agora em tempo integral com os gracejos de quem se autoproclamou sommelier do peso alheio e vive em estado de excitação permanente pelo filme de ação, o time de coração, a cerveja, o carro, os ídolos da nova política vestidos de Rambo em memes e fotomontagens e por todas as referências afetivas e 100% masculinas.

Foi nesta quarentena forçada que muita gente descobriu que não sabia conversar com a pessoa escolhida para estar junto na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza até que a pandemia os confinasse na mesma casa.

O que havia, antes disso, eram componentes de corpos que nunca foram apresentados em sua totalidade nas versões casa-trabalho-descanso-lazer.

Estes corpos se encontravam no fim de semana ou ao fim do dia de trabalho, quando um deles, ou dois, passavam horas fora de casa, em escritórios, viagens profissionais, visitas à casa dos amigos e parentes e fugas interiores disfarçadas de hobbies relacionados a bola, games, bikes, escaladas e outras atividades selvagens.

Com o mundo comprimido em casas e apartamentos, a distância entre o candidato a Christian Grey e o Homer Simpson é a distância entre o sofá e a pia que ele vê até a tampa, suspira, ajoelha e chora até que alguém faça para ele o trabalho até então invisível.

Pois este indivíduo que achou graça na história dos marmanjos que tiraram fotos de mulheres fazendo ioga em público, que lambe os dentes e assobia quando vê a companheira trocar de roupa em algum dos muitos turnos dos dias confinados e que diz estar ocupado demais enquanto consome ou compartilha pornografia com os amigos tanto objetificou suas relações que agora está prestes a ser destronado por um objeto.

Não qualquer objeto. Mas um objeto capaz de traduzir em estímulos elétricos os prazeres do corpo orientados pela mente inalcançável por quem vivia até ontem com a autoestima na lua da fantasia falocêntrica.

O dildo não vem com o resto do corpo, e o atrativo parece ser justamente esse. Ele não reclama, não diz que terapia é frescura, não repassa notícia falsa, não acorda bêbado no sofá nem faz quem o acompanha passar vergonha nos eventos sociais, quando havia.

O prazer mútuo, olha a ironia, agora não depende da relação presencial. Talvez para sempre. E quem prometia muito e entregava pouco agora se vê na iminência do descarte.

A ascensão do superdildo, é duro reconhecer, parece fazer muito sentido para quem descobriu numa pandemia que estar longe de quem se ama, ou supunha amar, era uma forma de não enlouquecer.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.